Ciência
24/03/2020 às 14:00•5 min de leitura
O período de 1870 a 1900 foi marcado pelo aumento alarmante da pobreza, da ansiedade corporativa com a influência da política, dos índices de desigualdade social, dos colapsos nervosos e das taxas vertiginosas de suicídio em contraste com o crescimento astronômico da economia industrial norte-americana.
Por conta disso, o filósofo Charles Sanders Peirce, em um de seus ensaios, nomeou a época como "era da dor", porém ele poderia estar se referindo também às décadas em que o campo da cirurgia era marcado por banhos de sangue e muito sofrimento. Toda essa dor vinha do fato de não existirem métodos de antissepsia, procedimentos de anestesia, estudos especializados em geral e profissionais capacitados o suficiente.
Para alguns estudiosos, a Idade Média foi uma época de pura sujeira e superstição com relação a como as pessoas deveriam ser tratadas, enquanto a Idade Moderna foi responsável pelo desenvolvimento de ideias científicas que permitiram vários avanços. O século XIX foi considerado a "era de heróis" e impulsionou a medicina de uma vez por todas.
Os cirurgiões precisavam conter os pacientes
Demorou muitos anos — mais especificamente até o fim do século XIX — para que o conceito de cirurgião fosse desenvolvido propriamente e respeitado. Até que isso acontecesse, eles eram considerados verdadeiros açougueiros pelas técnicas que usavam para operar e tratar os pacientes. Nem todos eram formados, e a maioria chegava a ser iletrada, pois na época a entrada nas melhores universidades era limitada às classes nobres, então os pobres se viravam como podiam.
Robert Liston tornou-se um dos cirurgiões mais conceituados de Londres apenas pela agilidade e destreza com que literalmente decepava partes do corpo humano. Apesar de ser formado, ele não pensava no quadro clínico, apenas em poupar a dor do paciente, e conseguia arrancar uma perna em cerca de 30 segundos. Inclusive, durante uma de suas infames operações, ele removeu um membro tão rapidamente que cerrou os dedos do próprio assistente, que morreu de infecção semanas depois.
Os pacientes ricos preferiam ser operados em casa
A medicina no século XIX foi aterrorizante. As cirurgias tinham taxa de mortalidade de 300%, por isso os hospitais obrigavam os pacientes a pagar antecipadamente, pois já sabiam que as chances de sobrevivência a um pós-operatório eram mínimas. Com procedimentos rudimentares e bárbaros, os ambulatórios eram piores que abatedouros; na verdade, eram como grandes lixões. Os espaços fediam a sangue coagulado e decomposição, além de serem infestados de ratos, sujidades que os pacientes carregavam e até mesmo fezes.
Não existia nenhum tipo de infraestrutura. Os instrumentos não eram higienizados e tudo o que deveria ser descartável era lavado com a água suja de cisternas e poços já contaminados pelo ambiente. O sangue dos pacientes se misturava e entrava em contato com as mucosas dos cirurgiões, que pareciam se divertir com o prazer sádico dos esguichos. Eles não lavavam as mãos, tampouco os aventais, que eram usados até mesmo na cidade: quanto mais ensanguentados, repletos de tripas e pus de vários pacientes estivessem, mais eram vistos como profissionais ocupados e rápidos. Um avental limpo era sinônimo de que o cirurgião era ocioso e não dava conta de minimizar a dor.
No século XIX, as pessoas eram obcecadas com a ideia de avanços na ciência, por isso praticamente invadiam teatros e outros ambientes onde as cirurgias eram realizadas para poderem assistir ao banho de sangue das vítimas. Com isso, levavam a imundície das ruas para os locais, deixando o piso tão emporcalhado que era necessário limpá-lo antes de o cirurgião começar a atuar.
O sangue era um sinal de glória para os médicos tanto quanto o pus. Segundo Robert Liston: "o pus era tão inseparável da cirurgia quanto o sangue". Ou seja, as feridas infectadas eram vistas como saudáveis, pois indicavam que as pessoas estavam se recuperando.
Todos queriam ver as operações
As pessoas tinham tanto medo de serem operadas que eram arrastadas para a mesa de cirurgia. Os médicos gostavam da fama de serem sanguinários e violentos na hora da abordagem, mais uma vez ressaltando que muitos deles se tornavam médicos mais pelo status e pela natureza sangrenta e visceral da profissão do que pela competência e pelo comprometimento com um ofício tão sério.
Em um século em que o aprendizado acontecia na prática, além de os pacientes passarem por uma agonia sem fim pela falta de anestesia, era comum que muitos deles tivessem a cirurgia marcada para acontecer dentro de um teatro com 150 estudantes e estudiosos, sobre uma mesa suja na qual cadáveres eram examinados pelos alunos.
Quando um paciente era conduzido para uma operação, eram necessários vários homens para contê-lo ao longo de todo o procedimento, que normalmente durava segundos. Uma amputação rápida era considerada mais fácil de consertar, pois reduzia significativamente a probabilidade de o paciente sangrar até a morte. A quantidade de tempo que alguém passava sobre a mesa cirúrgica estava diretamente associada à probabilidade de sair vivo dela.
Para que amputassem uma perna em menos de 2 minutos, os cirurgiões prendiam facas entre os dentes, para agilizar o processo, e pediam que os assistentes fizessem o mesmo. A dor extrema por vezes levava as pessoas a desenvolverem problemas psicológicos irreversíveis. Tumores eram removidos à sangue frio de qualquer parte do corpo, que ficava totalmente exposta aos germes durante o procedimento. Para fechar a incisão, era usado um ferro em brasa para parar o sangramento e cauterizar a pele.
Médicos passaram a borrifar substâncias tranquilizantes
O conceito moderno de anestesia demorou para ser formulado cientificamente e de uma maneira segura e eficaz. Enquanto isso não acontecia, os cirurgiões usaram uma variedade enorme de métodos para tentar diminuir a dor. Por vezes, o paciente recebia doses de gim ou uísque para que desmaiasse de embriaguez o mais rápido possível. Alguns preferiam fazer infusões de ervas ou narcóticos, como ópio do Oriente. No entanto, os opiáceos costumavam ser tão eficazes que levavam o paciente a óbito.
Foi em meados do século XIX que o éter começou a ser usado como droga nos Estados Unidos. Durante uma festa organizada pela aristocracia na cidade de Jefferson, no Missouri, um médico chamado Crawford Long descobriu que inalar éter prevenia a dor. Ele nunca publicou essa descoberta oficialmente, por isso em 1846 o dentista William Morton se autodeclarou a primeira pessoa a usar com êxito o éter como anestésico ao extrair um dente sem causar dor. A substância, porém, fazia os pacientes vomitarem violentamente e se mostrou inflamável, o que dificultava a cirurgia perto de velas ou candeeiros.
Em 1847, o obstetra escocês James Simpson começou a experimentar produtos químicos como anestésico, visto que já estava ciente das desvantagens do éter. Foi então que se deparou com o clorofórmio e passou a usá-lo em mulheres durante o parto, o que gerou grande controvérsia médica e religiosa na época. Um ano depois, em janeiro de 1848, Hannah Greener morreu aos 15 anos de idade após fazer uso da substância antes de uma cirurgia para remover uma unha encravada. Muitos acreditavam que a morte dela foi motivada pela arritmia cardíaca que o clorofórmio causa.
O caso de Greener lançou uma luz sobre o problema que a anestesia se tornava quando usada em procedimentos cirúrgicos em que só uma parte do corpo exigia entorpecimento. A partir daí, a busca por um anestésico local teve início.
Joseph Lister
Com a anestesia, os cirurgiões podiam focar mais na maneira como a operação estava sendo feita, diminuindo a barbárie e se dedicando ao entendimento estratégico do procedimento. Com isso, começaram a passar mais tempo dentro do corpo humano com os equipamentos totalmente infectados, resultando em um aumento alarmante nos índices de mortalidade.
O médico cirurgião Joseph Lister começou a galgar os seus primeiros passos bem quando a medicina como ele conhecia estava sendo transformada. Ele foi o responsável pelos primeiros métodos de cirurgia asséptica e pela introdução de instrumentos estéreis nas salas de cirurgia. Como teste, começou a borrifar uma solução de ácido carbólico em instrumentos, aventais e incisões. Foi assim que descobriu que uma lesão que recebia a substância dificilmente evoluía para um quadro de gangrena. Ele teve certeza de seus estudos em meados de agosto de 1865, quando aplicou o produto na fratura exposta de um garotinho de 7 anos de idade. Durante 6 semanas, Lister limpou a ferida e renovou os curativos; no último dia, notou que nenhuma infecção tinha se espalhado, e o menino teve alta do hospital.
Depois de publicar essas descobertas em artigos da revista The Lancet, em 1867, Lister teve que encarar censuras e advertências de um meio entrincheirado para que o método fosse levado a sério e se tornasse parte do protocolo médico mundial.