Artes/cultura
18/09/2020 às 15:00•4 min de leitura
Devastação e morte são duas palavras que andam lado a lado com a história da China. Entre 1916 e 1927, durante a Era dos Senhores da Guerra (um período marcado pela divisão do poder entre chefes militares), estima-se que cerca de 6 milhões de camponeses morreram de fome devido às instabilidades econômicas.
De 1927 até 1937, em um período denominado Década de Nanquim, quando a capital Nanquim foi declarada pertencente ao Partido Nacionalista, a China registrou 8 milhões de pessoas mortas por causa da violência.
No entanto, por incrível que pareça, o pior ainda estava por vir.
Mao Tsé-Tung. (Fonte: Pinterest/Reprodução)
Em julho de 1958, o Rio Amarelo inundou e causou a destruição de parte da província de Henan e de Shandong. Segundo relatórios do governo, estima-se que cerca de 741 mil pessoas tiveram seus lares arrasados nas 1.708 aldeias, sendo que milhares de acres de campos agrícolas foram apagados.
No ano seguinte, o calor severo matou milhares de pessoas, com uma temperatura que provocou uma seca jamais vista na China. Esses dois cataclismos foram acompanhados de tufões, infestações de insetos que atingiram pessoas e devoraram o que havia sobrado das plantações.
Isso se estendeu por mais 3 obscuros anos que foram marcados pela queda vertiginosa da China em um desfiladeiro socioeconômico. Os líderes chineses definiram esse período como os "Três Anos de Desastres Naturais", atribuindo toda a culpa à natureza. Entretanto, o político Liu Shaoqi disse que apenas 30% do que o país passou pode ser atribuído aos fenômenos naturais, pois 70% tinha acontecido por causa de erro humano, causado por Mao Tsé-Tung.
(Fonte: Alpha History/Reprodução)
Em 1958, o líder político decidiu iniciar uma campanha de reforma chamada Grande Salto Adiante, que visava transformar a China, em tempo recorde, em uma nação economicamente muito desenvolvida e socialmente igualitária por meio de uma aceleração da interdependência dos camponeses através de uma reforma agrária forçada e da industrialização urbana.
O cronograma pretendia fazer tudo isso em 3 anos, sendo que o processo levaria, na verdade, de 10 a 15 anos no mínimo. No entanto, Mao tinha a ambição de poder declarar que a sua nação tinha "o poder de um átomo".
(Fonte: Alpha History/Reprodução)
Historiadores como Frank Dikötter afirmam que a maioria das inundações aconteceram devido às obras de irrigação massivas mal instaladas e executadas que foram espalhadas por todo o país para que o “salto” de Mao pudesse acontecer.
Estimulados pelo líder, os camponeses ergueram centenas de barragens entre os milhares de quilômetros de canais de irrigação na esperança de deslocar a água das áreas úmidas para as regiões que estavam secas.
Demorou para que ficasse claro que as mudanças institucionais e agrárias do projeto de Mao foram os principais fatores para agravar os desastres causados pela natureza e estabelecer um dos piores inimigos do homem: a fome.
Mao comprou todas as ideias mirabolantes do russo Trofim Lysenko e o colocou à frente do projeto de aceleração da produção agrária. Lysenko ordenou que os agricultores utilizassem a técnica da lavoura profunda – cavando 50 cm no solo em vez de 20 cm – para modificar a retenção de água e encorajar o crescimento de raízes mais profundas. Ele fez isso ignorando o fato de que, em solo raso, sedimentos e areia seriam empurrados para cima e, com isso, enterrariam o solo fértil, atrofiando gravemente o crescimento das mudas.
Com os camponeses proibidos de usarem fertilizantes nas terras, o projeto de Lysenko permitiu que elas fossem destruídas pelos fenômenos naturais.
(Fonte: Flickr/Reprodução)
E, como se não isso não bastasse, para criar uma falsa ilusão de que a economia estava em expansão, o governo espalhou relatórios fabricados de números recordes de colheita, que na verdade estava em queda — afinal, os agricultores foram forçados a vender seus grãos a preços estipulados pelo governo.
Desse modo, os relatórios serviram para manter os agricultores produzindo enquanto tudo era exportado para alimentar os centros urbanos, em um ato deliberado de fornecimento seletivo.
Acreditando no governo e nos números apresentados por este, as comunas ignoraram o baixo índice de estoque interno com a certeza de que alguma ajuda seria enviada caso a situação não melhorasse.
Tudo era para ter sido encerrado em agosto de 1959 durante a Conferência de Lushan, quando Peng Dehuai criticou os exageros do Grande Salto Adiante, porém Mao não relaxou as políticas e a catástrofe arrebentou de vez.
(Fonte: UWM/Reprodução)
Os chineses foram devorados pela "onda" de fome. Somente na província de Sichuan, milhares de pessoas arrancavam nacos de terra com grama ou cascas de árvores para comer. Esterco, couro e serragem foram outras fontes alternativas de alimentação. Uma guerra começou quando cães e gatos domésticos foram roubados para serem comidos, enquanto pessoas se lançavam até dentro dos esgotos com o intuito de capturar ratazanas para matar a fome.
Quando os animais acabaram, esquadrões de camponeses vasculharam covas recém-feitas para exumar os cadáveres e devorá-los. Aqueles que ficaram doentes foram canibalizados pelos parentes ou por estranhos. Dikötter descreve em seu livro A Grande Fome de Mao: A História da Catástrofe mais Devastadora da China que até as mães comiam os fetos que nasciam mortos pela deficiência de vitaminas. As mulheres sofreram de amenorreia (ausência de períodos menstruais) e o enfraquecimento dos músculos pélvicos causou em milhares delas a descida do útero para o interior da vagina.
(Fonte: Indus Scrolls/Reprodução)
Milhares de pessoas ficaram desnutridas, repletas de edemas por causa da fome. Em virtude disso, estima-se que cerca de 3 milhões se suicidaram – e alguns foram comidos – durante picos de histeria ou desenvolveram transtornos mentais irreversíveis.
Foi necessário que aproximadamente 53 milhões de pessoas morressem para que o ego desproporcional de Mao Tsé-Tung acabasse com o Grande Salto Adiante, em 1961 – embora isso tenha acontecido principalmente porque a fome começou a atingir outras esferas sociais.
Até que isso acontecesse, o líder escondeu todas as informações sobre a tragédia, atribuiu aos desastres naturais o que vazou na mídia e promoveu uma campanha com propagandas de camponeses felizes, campos férteis e mesas abundantes.
Em 1981, o Partido Comunista da China definiu essa fase como "Os Três Anos de Dificuldade" e trata tudo o que aconteceu de forma normalizada. No entanto, até hoje a maioria da nação não sabe o que de fato aconteceu. Ela continua sendo enganada.