Ciência
06/06/2024 às 18:00•5 min de leituraAtualizado em 06/06/2024 às 18:00
Estamos consumindo muito. A essa altura, já não é possível mais identificar se isso acontece devido ao fluxo unidirecional de consumo das alavancas do capitalismo ou se porque já ultrapassamos todos os limites que o planeta poderia suportar e, por essa razão, agora ele está falhando conosco.
Em 15 de novembro de 2022, a população mundial alcançou a marca de 8 bilhões, conforme a Organização das Nações Unidas (ONU), sendo que esse número não parou de crescer desde a década de 1960. Nada ironicamente, essa época foi uma espécie de divisor de águas, marcando o início do expansionismo comercial e também de quando os cientistas alertaram sobre os riscos do aquecimento global e como essa conduta o amplificaria.
Atualmente, o setor de alimentos é um dos principais contribuintes para as mudanças climáticas, responsável por 40% das emissões de gases de efeito estufa no mundo. Como se não fosse o suficiente usar 60% das terras agrícolas do mundo para essa finalidade, como mostrou um estudo de 2018 do Faunalytics, e cobrir 40% da terra do planeta com fazendas industriais, o setor de alimentos usa 70% da água doce disponível. Para produzir alimentos para bilhões de pessoas são necessários 52,8 milhões de galões de água por segundo, gastando de 30% a 40% da energia global.
Até 2050, estima-se que a população mundial cresça para 2,5 bilhões. Os Estados Unidos já fizeram a conta e chegaram à conclusão, em 2017, que 60% da população mundial estará vivendo em centros urbanos até 2050. Portanto, a produção precisa aumentar em 50% em comparação a 2012 para atender à crescente demanda. Mas isso só implica em parte do problema de que os EUA estão ficando sem energia elétrica. Após 15 anos de estabilidade, a demanda por energia está crescendo novamente, e aqui estão os motivos.
Engana-se quem imagina que a startup Interlune, do ex-presidente Rob Meyerson, da Blue Origin, visa somente minerar hélio-3 da Lua para aliviar a exploração dos meios naturais e a emissão de gases de efeito estufa na produção de energia. Se até 2050 se tornar possível o uso do hélio-3 para produzir energia elétrica de forma sustentável, os custos ocultos do setor industrial não diminuirão a ponto de proteger o planeta ou o bem-estar de quem o habita.
Atualmente, o estado da Georgia, no sudeste dos EUA, possui mais de 10 milhões de habitantes e vastas áreas já estão sofrendo com a falta de energia devido à demanda industrial. As projeções para a década de 2030 é de 17 vezes maior do que agora. O Arizona Public Service, a maior fornecedora de energia do estado, não só está lutando para acompanhar o ritmo e as consequências, como também já emitiu uma declaração alegando que estará fora da capacidade de distribuição até o final da década.
Esse número foi um reflexo não só da aprovação da histórica Lei de Redução da Inflação, em 2022, com cerca de US$ 28 bilhões em novos investimentos em manufatura, principalmente nos setores de veículos elétricos, baterias e fabricação de energia solar –, mas também de como o estado se tornou o marco zero do renascimento industrial do país desde 2014, por isso várias empresas que produzem de tudo migraram para lá.
A holding de energia elétrica e gás natural Duke Energy Carolinas previu em 2020 que cerca de 400 mil veículos estariam rodando no território da Carolina do Norte até meados da década de 2030. No entanto, ano passado, esse número foi atualizado para se igual ao crescimento de mercado e acabou elevado para mais de 2 milhões até a data prevista.
Essa verdadeira corrida pela eletricidade tem um novo participante ativo, já responsável por todo o desequilíbrio da cadeia: a inteligência artificial. Os centros de processamento de dados, também conhecido como data centers, são o novo vilão do consumo e da escassez de energia ao requirirem a construção de grandes armazéns de infraestrutura de computação que exigem mais energia do que os centros de processamento tradicionais.
Só este ano, a Microsoft construirá um novo data center a cada 3 a 6 dias, o mesmo que demais empresas de tecnologia, de Amazon a Apple, estão fazendo pelo país. O norte da Virgínia e o estado do Texas precisarão do equivalente a algumas usinas nucleares para atender os novos data centers que estão planejados ou já construção, além de sustentar sua população. Segundo a Agência Internacional de Energia, os 2.700 data centers do país cortaram mais de 4% da eletricidade total dos estadunidenses em 2022, podendo chegar a 6% em 2026.
Em meio a isso, a política industrial do governo Biden atraiu empresas para construir fábricas nos EUA em um ritmo não visto desde 1990, incluindo fabricantes de tecnologia limpa, como painéis solares e baterias de carros elétricos, atraídas pelos incentivos federais lucrativos. O Eletric Power Research Institute revelou que as empresas anunciaram planos para construir ou expandir mais de 155 fábricas no país. Essa é a maior parcela desde a era Bush e Clinton.
Portanto, não é apenas uma corrida pela eletricidade, mas sim uma crise à medida que o atual maior emissor de gases de efeito estufa do mundo tenta alterar seu status quo ao descarbonizar sua economia. O país está fervilhando em debates sobre quem pagará novos fornecimentos de energia, enquanto a população teme o aumento das tarifas, reclama sobre as quedas de energia cada vez mais frequentes, e os executivos pressionam para atrasar a aposentadoria de usinas de combustíveis fósseis.
Por um lado, essa tendência é algo bom porque significa que a estrutura está, de fato, se movendo, o problema é com relação às consequências que essa pressão toda está gerando em um sistema sobrecarregado. Fora que um lobby de empresas e fornecedoras de energia estão se aproveitando do momento para justificar o uso de combustíveis fósseis como forma de atender essa demanda crescente.
Em janeiro desse ano, uma reportagem da Bloomberg apontou que cerca de 24 usinas de carvão, do Kentucky a Dakota do Norte, tiveram sua aposentadora adiada. Esse movimento contaminou as empresas de petróleo e gás, que reverteram cínica e silenciosamente suas metas climáticas.
A Duke Energy Carolinas havia anunciado aos reguladores que seria incapaz de cumprir sua meta de reduzir emissões em 70% até 2030, pedindo mais 5 anos de prazo. A FirstEnergy, com uma rede de mais de 6 milhões de clientes, também abandonou seu plano, cujo objetivo era reduzir as emissões em 30% até 2030.
Em sua defesa, as fornecedoras de energia alegaram que os EUA devem escolher entre atender à nova demanda de energia ou cumprir suas agendas climáticas. No entanto, trata-se de uma dicotomia cínica porque a queima de combustíveis fósseis não é a única maneira de resolver a crise de energia do país, tampouco a mais barata.
Em março desse ano, a Energy Innovation, uma organização sem fins lucrativos de modelagem energética, divulgou um relatório mostrando algumas soluções às fornecedoras de energia sem recorrer às usinas de combustíveis fósseis, entre as quais está a eficiência energética. Foi por meio dela que entre 2006 e 2021, as fornecedoras de energia reduziram a demanda por eletricidade em 220 TWh, o equivalente ao consumo de todo o estado da Flórida em um ano. Inclusive, essa estratégia é uma das principais responsáveis pelos 15 anos de estabilidade na demanda de energia no país.
O problema é que as empresas estão investindo menos em programas sustentáveis e econômicos desde 2019, alegando que fizeram isso por conta da desaceleração do congestionamento da transmissão que impede a construção de usinas a baterias, eólica ou solar por meio das "usinas virtuais".
Entre 2012 e 2016, cerca de 2 mil quilômetros de linhas de transmissão de alta tensão foram construídas nos EUA, mas esse número despencou para 400 km entre 2017 e 2021. A construção delas envolve grandes aquisições de terras, revisões ambientais e negociações para determinar quem deve pagar quais custos. É um processo politicamente complicado, mas não deveria ser justificativa para o posicionamento dessas empresas, que possuem uma gama de alternativas.
No momento, para os especialistas energéticos e os cientistas políticos envolvidos no debate, a grande questão não é se os EUA têm capacidade tecnológica e física para atender à demanda de energia, mas se o governo vai permitir ou não que as fornecedoras de energia façam o que bem entenderem ou se serão forçadas por lei a adotar soluções mais limpas e baratas nesse período de crise.