Ciência
25/03/2020 às 14:00•5 min de leitura
Levar a lei às próprias mãos para punir alguém é um conceito e uma prática que antecedem os registros mais longínquos de nossa história. Quando vindo de grupos dominantes, o linchamento (ou linchagem) por anos serviu para oprimir, controlar e punir uma classe específica da sociedade. Entre a comunidade, essa prática era cometida por uma multidão com o único objetivo de punir por meio da morte um suposto criminoso ou agressor.
O processo envolvia: acusações criminais quase sempre duvidosas e baseadas em deduções do povo; uma prisão preventiva para a organização de uma multidão de linchadores com a intenção de subverter o processo judicial constitucional; executar a lei com base no povo, pois este era soberano e deveria decidir pela sociedade.
Embora o linchamento seja encontrado em várias partes do mundo, os Estados Unidos foram os responsáveis por moldar o ato como o conhecemos hoje em dia. Durante o período de 1877 (início da era da Reconstrução dos Estados Unidos pós-guerra civil) até meados de 1950, a linchagem se tornou um método de controle social e principalmente racial, visando aterrorizar os americanos afrodescendentes.
Tudo teria se intensificado a partir do momento em que cidades de populações negras surgiram no Sul do país e esses afro-americanos começaram a fazer incursões econômicas, estabelecer negócios e reivindicar os seus direitos políticos — registrando-se para votar e concorrendo a cargos públicos.
Muitos brancos, tanto os ricos quantos os pobres, se sentiram ameaçados por esse aumento vertiginoso do posicionamento dos negros na sociedade. O principal receio da população branca era a ocorrência de relações sexuais entre as raças, pois isso resultaria na perda do "purismo" que tanto prezavam. Assim, a cena de uma turba de pessoas brancas enfurecidas amarrando homens negros a árvores por supostos crimes era só metade da história, uma vez que o objetivo principal do ato era manter a supremacia branca em posse das esferas econômica, social e política.
Linchamentos eram motivo de celebração.
Os estupros de mulheres aconteciam desde antes do período colonial. A sociedade que se seguiu ao longo da história jamais enxergou essa violência como deveria ser. Entre o século XIX e XX, isso ganhou um forte aspecto de hipocrisia por parte da sociedade branca, a qual costumava acusar os homens negros de violar as mulheres e com isso poder mobilizar multidões para linchá-los. Segundo dados da Equal Justice Initiative, quase 25% das vítimas eram acusadas de abuso sexual. Crimes de roubos representavam 30%, logo também eram uma desculpa comum. Qualquer alarde com gritaria de algum vendedor era o suficiente para várias mãos surgirem com a finalidade de conter o dito ladrão.
De 1882 a 1968, 4.743 linchamentos oficiais ocorreram no solo norte-americano. Desse número, 3.446 eram pessoas negras. Elas representavam uma parcela de 72,7% na maioria dos casos, porém os historiadores acreditam que esse número seja bem maior, pois nem todos os casos foram documentados. Dessa porcentagem, 1.297 brancos foram linchados simplesmente pelo “crime” de ajudarem negros ou por serem contra as práticas de linchamento em geral.
Havia também outros motivos que provocavam os linchamentos, como jogar, brigar, discutir com um homem branco, tentar votar, fazer comentários "indisciplinados", exigir respeito, “agir com desconfiança” e andar em dois ou mais indivíduos pelas ruas ao cair da noite. Não era nenhum exagero dizer que negros — homem, mulher ou criança — moradores da região do Sul dos Estados Unidos durante essa época corriam o risco de serem linchados por qualquer motivo, sejam comportamentos vistos pelos brancos como impróprios ou imaginados pela ótica branca da população.
Cartão-postal do linchamento de Jesse Washington.
O linchamento fazia parte de um grau tão torpe e dantesco da mente dos americanos brancos que eles não viam a prática sequer como uma espécie de "mal necessário para manter a ordem", o que poderia fazer algum sentido dentro de suas mentes preconceituosas. Eles achavam esse ato violento um espetáculo, um momento de alegria e celebração saudável. Linchar era uma conquista, por isso o "evento" era divulgado até nos jornais da época, com manchetes extravagantes e exageradas contando detalhes do crime, bem como indicando o horário e a data de quando a “justiça” branca seria feita.
Mães e pais carregando os seus filhos pelas mãos se aglutinavam em meio a multidão ao redor de um palanque sob uma árvore para assistir àquilo. Para eles, a morte dos negros era realmente um show. As famílias cantavam, faziam danças, batiam fotos e lançavam imprecações enquanto a vítima era "cozinhada" por eles, que bebiam às custas da iminente morte do outro.
Foi por meio dessa repetição praticamente diária que a tortura e o assassinato dessas pessoas, julgadas suspeitas de cometer algo errado, adquiriram a estrutura sólida de um verdadeiro ritual. Essa execução grotesca servia como "cola" para unir a comunidade branca e reafirmar tanto o seu poder quanto a sua participação ativa no meio social, apresentando-se como raça dominante, assim como acontecia nos rituais religiosos.
Como parte de todo o ritual, os brancos entalhavam na carne das vítimas "os motivos" de sua insubordinação à dominação branca. Dessa forma, os cadáveres simbolizavam a diferença racial e um aviso aos outros negros para que "soubessem o seu lugar". Considerando isso, logo que a vítima era enforcada, o seu corpo ficava no local para exibição pública, como uma maneira de mandar uma mensagem à comunidade em geral. Isso violava deliberadamente os costumes culturais daquela sociedade que "honrava os mortos", pois demonstrava o desprezo dos supremacistas brancos pelas vítimas negras.
Depois disso, o cadáver era incendiado em mais um festival público. O desmembramento era a atrocidade final, no qual as partes eram distribuídas aos espectadores. Eles geralmente disputavam esses membros, principalmente as genitálias, porque guardavam como uma espécie de troféu. As crianças se divertiam com a cena horrenda e o presente final conquistado com orgulho pelos os pais.
Além da natureza completamente doentia desses rituais violentos, tornou-se comum os brancos considerarem esses atos como “eventos”. Eles documentavam por meio de imagens todos os acontecimentos, as quais usavam na confecção e comercialização de cartões-postais, os quais eram enviados pelos brancos aos seus familiares ao redor do país. Eram comuns nas legendas das fotos aparecerem frases como “Gostaria que estivesse aqui”; “Essa foi para você”; “Venha na próxima, celebraremos juntos”. Nessas fotografias, eram registrados homens negros pendurados com os brancos brindando e sorrindo abaixo, em uma representação bizarra e horrível de conquista parecida com as exibidas por pescadores.
A notícia sobre a família Nelson
Em 2 de maio de 1911 no norte de Okemah (Oklahoma), o xerife George Loney recebeu uma denúncia de roubo de uma vaca de uma fazenda próxima que o levou até a propriedade da família Nelson. Os donos do animal acusavam um garoto afro-americano de 15 anos chamado Lawrence Nelson de ter roubado o bicho.
Quando George Loney chegou à residência, Nelson, após apurar os fatos, descobriu que a vaca já tinha sido abatida pelo pai da família, Austin Nelson. O homem confessou que na verdade foi ele quem roubou o animal, pois não tinha nada para dar de comer a esposa e aos filhos.
Durante uma revista repleta de tensão pela casa, o xerife teria encontrado um mosquete pendurado na parede. No momento no qual Loney exigiu que a arma fosse entregue a ele, Lawrence Nelson teria se apavorado achando que o homem iria atirar em seu pai ali mesmo pelo crime que tinha cometido. O garoto então pegou outra arma com o intuito de afugentar o xerife por meio do medo. Laura Nelson, a mãe, correu desesperada para tentar impedir, o que gerou uma movimentação inesperada que assustou o menino. A arma disparou e atingiu o xerife George Loney na perna, o qual recusou ser tocado por qualquer um deles e se esvaiu em sangue até a morte.
Toda a família foi presa. Austin Nelson foi acusado pelo roubo da vaca e o seu abatimento. Pensando em salvar a família de qualquer punição, o pai se declarou culpado e foi condenado a 3 anos de encarceramento. Contudo, Lawrence e Laura Nelson foram acusados pelo assassinato do xerife Loney. Foi negado a eles a fiança, e os dois seguiram direto para a prisão até o julgamento oficial.
Laura e Lawrence Nelson enforcados.
Com a notícia se espalhando pela cidade inteira, na madrugada do dia 24 de maio de 1911, um grupo de 40 homens brancos decidiu tomar medidas preventivas da única maneira possível (na mente deles): matando. Eles invadiram a prisão local onde a família estava presa e surraram todos a ponto de cegar o carcereiro para que o guarda não pudesse reconhecer nenhum dos invasores depois.
Laura Nelson, que obteve permissão para cuidar de sua filha Carrie, de 2 anos, foi estuprada por todos os homens em frente à criança enquanto Lawrence simplesmente foi apedrejado em sua cela. Depois de muito serem esmurrados e chutados, os três foram carregados até a famosa ponte de aço sobre o Rio Norte Canadense, a 9 km do local.
A mulher teve tempo de deixar Carrie na extremidade esquerda da ponte antes de ser arrastada com o filho para o outro lado. Um laço foi amarrado ao redor do pescoço de Laura e Lawrence e eles foram jogados da ponte sob uivos de celebração.
Antes das 11h, uma multidão de pessoas posou para o fotógrafo George Henry Farnum e um cartão-postal grotesco da cena de assassinato foi feito. Essa cena representou o quanto foi cruel essa época, com certeza uma das eras mais sombrias da história dos Estados Unidos.