Hospital Colônia de Barbacena, o 'Holocausto brasileiro'

03/04/2020 às 14:005 min de leitura

Atenção! Se você se incomoda com temas que envolvam sexo ou violência, ou tem menos de 18 anos, é melhor parar por aqui. Caso contrário, é só prosseguir para o nosso artigo.

*****

Holocausto, shoá, genocídio, chacina, assassinato em massa, massacre ou extermínio são apenas alguns dos sinônimos para designar toda a vez que conflitos, guerras, imposição de uma eugenia de raças, regimes totalitários, dominância de classes, o despojar de minorias e a opressão mataram milhares de pessoas em detrimento da própria visão ególatra. Isso aconteceu no Camboja, em 1917; na Alemanha Nazista, em 1941; na Turquia, em 1915; na China e no Tibet, em 1958; em Nanquim, em 1937.

Esses foram só alguns dos lugares onde esses horrores não foram esquecidos, mas lembrados e lamentados para que não se repetissem. Os Campos de Concentração da Seca, que foram instaurados no Ceará, em 1915, para impedir que os retirantes que morriam de fome pela seca chegassem à capital do estado, foram totalmente apagados da história brasileira, assim como os corpos de centenas de pessoas que se amontoaram às margens dos trilhos dos trens que os levavam para esses currais humanos.

Quinze anos mais tarde, o país foi palco de uma dizimação em massa que manchou para sempre as páginas de nossa narrativa, mas que para o governo, aparentemente, não foi o suficiente, mais uma vez, para chegar aos livros didáticos ou ao conhecimento da sociedade no geral.

Mal-vindos ao Hospital Colônia

Os pavilhões do Hospital ColôniaOs pavilhões do Hospital Colônia

O município de Barbacena fica na Serra da Mantiqueira, no interior do estado de Minas Gerais, no Brasil, a cerca de 170 km da capital Belo Horizonte. No ano de 1903, a região ficou conhecida pela população como "Cidade dos Loucos" devido à instalação de sete hospitais psiquiátricos. A maioria dos profissionais da época deram justificativas técnicas de que as temperaturas amenas demais para o padrão brasileiro e o clima bucólico de montanha eram salutares e tornavam menos arredios aqueles com doenças mentais, facilitando o tratamento.

Uma dessas edificações era o Hospital Colônia, construído em 12 de outubro de 1903 em terras da Fazenda da Caveira, na época propriedade de Joaquim Silvério dos Reis. Constituído por 16 pavilhões independentes, cada um com uma função diferente, sempre separando homens de mulheres à princípio, o hospital particular era destino de pacientes tuberculosos antes de se tornar um depósito humano.

Ao longo dos anos, a instituição foi perdendo a mão de suas próprias funções. Com poucos leitos para abrigar tantos doentes e com a perda de dinheiro no sistema administrativo do hospital pela ausência da elite carioca que ia se tratar no local, a falência começou a se aproximar. Em 1930, o estabelecimento faliu de vez e a Secretaria de Estado de Saúde do Estado de Minas Gerais (SES) se apossou das funções do local, automaticamente tornando-o uma instituição de natureza pública rebatizada de Hospital Colônia de Barbacena, oficialmente transformando-o em um hospício. O órgão comprou a responsabilidade pela manutenção e funcionamento do hospital, trazendo a maioria dos funcionários através de concursos públicos.

Mas não foi bem assim que aconteceu.

Os porões da sociedade

Não havia distinção entre são e doentesNão havia distinção entre são e doentes

Tudo o que decorreu a partir daquele ano configura como crime à humanidade. Mais uma vez, o governo uniu forças para que todos os tipos de desabrigados, alcoólatras, viciados em drogas, prostitutas, inimigos políticos, homossexuais, vítimas de estupros, mães solteiras, pobres, pessoas negras, marginais, loucos, portadores de doenças físicas, jovens, crianças e até mesmo órfãos fossem encaminhados para a Colônia. 

Em adição a isso, aqueles que simplesmente não se ajustavam ao padrão normativo da época, como os homens tímidos demais ou considerados afeminados e as mulheres com temperamento forte e que não desejavam se casar, também eram confinados atrás dos muros do local. Por isso, cerca de 70% da malha populacional não possuía diagnóstico de transtorno psicológico algum, só estavam lá por causa de quem visava purificar a sociedade daqueles que “não se encaixavam” ao que era proposto ou esperado deles.

Foi o autor Guimarães Rosa que originou a expressão “trem de loucos” em um de seus livros, em 1962, para se referir aos comboios que chegavam à estação Bias Fortes, em Barbacena, trazendo vários internos amontoados como animais para serem consumidos pela Colônia. Assim que atravessavam os portões do hospital, eles deixavam de existir. Os servidores separavam homens das mulheres, confiscavam todos os seus pertences e arrancavam suas roupas na frente de todos. Eles perdiam a identidade, ganhando nomes fantasia inventados pelos seus carcereiros para diferenciá-los. Eram vestidos com uma farda azul feita de um tecido fino e pueril. Muitos morreram em virtude das baixas temperaturas do local, que atingiam até 8 °C.

Na Colônia, não havia água encanada ou saneamento adequadoNa Colônia, não havia água encanada ou saneamento adequado

O hospital era literalmente uma colônia, só que para aqueles que pudessem "prejudicar" a reputação ou imagem do sistema político, social e familiar, replicando a teoria de eugenia das raças proposta por Hitler durante os campos de concentração, erguidos a partir dos experimentos da Ação T4, e também repetindo o que já haviam feito durante as secas no Ceará. Todos precisavam ficar bem confinados nesse grande ralo, num local de difícil acesso e onde os olhos de ninguém poderiam facilmente alcançar.

Esse "detox social" causou a superlotação do Hospital Colônia, que passou a ocupar até cinco mil pessoas num local projetado para caber no máximo duzentas. Ao longo de 30 anos de atividade, os servidores executaram os doentios métodos de tortura e o extermínio dos internos para que o local pudesse receber mais milhares para morrer e assim manter a máquina de genocídio funcionando.

Morrendo por dentro

Os pacientes não recebiam nenhum tratamento adequadoOs pacientes não recebiam nenhum tratamento adequado

Além de serem exterminados e torturados, existem registros de 1916 que comprovam que boa parte da receita do hospital foi gerada às custas do trabalho forçado dos internos em plantações de milho, batata-doce, feijão, consertos públicos, limpeza etc. Eles não recebiam nenhum tipo de remuneração ou cuidado, nem mesmo alimentação.

A partir de 1930, onde se instalou o período de maior lotação da Colônia, cerca de 16 pessoas chegavam a morrer por dia em virtude de fome, espancamentos, doenças e estupros. Seus cadáveres, porém, eram vendidos para universidades de medicina e os ossos eram comercializados até para confecção de artesanato regional. Estima-se que até 1.853 corpos foram vendidos para 17 faculdades por todo o Brasil.

Confinadas, as vítimas enfrentavam o frio dormindo sob folhas de capim ou se amontoando para gerar calor humano, visto que, por conta da lotação, a maioria deles andava nua por falta de roupas. Eram diariamente submetidos à terapia de choque com o intuito de “reverter” o quadro clínico de “louco”, em sua maioria inexistente. Os pacientes também eram arrastados para as duchas escocesas no meio da noite sem motivo aparente. A maioria deles morria de hipotermia logo em seguida. Enquanto isso, os funcionários disputavam entre si para participarem dessas sessões, pois elas serviam como promoção para um cargo melhor dentro da instituição. Mais uma vez, matar para se elevar.

Coberto por moscas, o garoto deu impressão de estar morto ao fotógrafo Napoleão XavierCoberto por moscas, o garoto deu impressão de estar morto ao fotógrafo Napoleão Xavier

A Colônia não dispunha de um sistema de saneamento básico adequado, então os prisioneiros defecavam e urinavam pelas dependências. Muitos deles bebiam a própria urina ou a água que corria pelos esgotos a céu aberto e consumiam ratos e pombos, famintos pela escassez de nutrientes nas rações que recebiam, em sua maioria vencidas ou já em processo de decomposição.

Temendo serem estupradas até que morressem de hemorragia ou infecção, numa atitude desesperada, as mulheres se cobriam de fezes para não permitirem que funcionários e pacientes se aproximassem delas. No entanto, isso não evitava que fossem espancadas.

Durante os 30 anos em que a Colônia recebeu pessoas de todos os cantos do país, mais ou menos 60 mil brasileiros morreram lá. Cada um deles foi por culpa de um Estado de repressão e uma sociedade normativa.

De olhos fechados

As mulher eram vítimas cruéisAs mulher eram vítimas cruéis

O silêncio gritou a realidade quando, em 1961, o fotógrafo Luiz Alfredo, do jornal O Cruzeiro, a convite do então governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, capturou tudo o que se passava dentro do Hospital Colônia, expondo ao público. Em depoimento marcante para a VICE, em 2013, uma das falas do profissional foi: “Ainda havia democracia no país aquela época. Como poderia haver algo desse tipo?”.

Todo mundo se chocou, mas nada foi feito. Em 1979, o jornal O Estado de Minas publicou uma série de reportagens intituladas “Os porões da loucura”, detalhando o que as fotos não alcançavam – se é que isso era possível. No mesmo ano, o documentário Em nome da Razão, de Helvécio Ratton, levou uma equipe para inspecionar a decadência humana que corria solta na Colônia. Franco Basaglia, grande nome na luta pelo fim dos sanatórios, declarou abertamente à imprensa, após visitar o local, que havia estado em um campo de concentração nazista.

Apesar de tudo isso, foi apenas na década de 1980 que a história do Hospital Colônia teve fim, encerrando de vez as atividades. Dentre os que sobreviveram durante e depois, adicionando os que fugiram, soma-se um total de 200 pessoas.

Em memória daqueles que foram exterminados na Colônia Barbacena, no mesmo local, foi aberto o Museu da Loucura em 1996. As barbáries cometidas por detrás das paredes do local foram crimes institucionalizados, tendo o Estado como o responsável. Contudo, nunca houve uma reparação formal, nem mesmo com os que sobreviveram, apenas um fechar de olhos permanente, um desviar de atenção do retrovisor de nossa história, deliberadamente ignorando o que Miguel de Cervantes escreveu em seu Don Quixote de La Mancha: “A história é émula do tempo, repositório dos fatos, testemunha do passado, exemplo do presente, advertência do futuro”.

Fonte

NOSSOS SITES

  • TecMundo
  • TecMundo
  • TecMundo
  • TecMundo
  • Logo Mega Curioso
  • Logo Baixaki
  • Logo Click Jogos
  • Logo TecMundo

Pesquisas anteriores: