Artes/cultura
29/09/2020 às 15:00•4 min de leitura
Não é mistério para ninguém que o regime totalitário da Coreia do Norte, liderado por Kim Jong-un, mantém há décadas os habitantes da nação sob forte repressão. Desde muito cedo, as pessoas são ensinadas que podem ser punidas se tiverem qualquer atitude que não seja aprovada pelo governo.
O Estado e as agências de segurança que fazem o controle da população também extraem o trabalho forçado de mulheres, crianças e prisioneiros para sustentar a economia interna, colaborar em infraestrutura, implementar projetos e realizar atividades e eventos que enalteçam a família do líder Kim e o Partido dos Trabalhadores da Coreia. Em algum momento da vida, algum norte-coreano vai ter que realizar trabalho não remunerado.
As pessoas não são livres para escolher o próprio trabalho, pois o governo estabelece limites entre quais empregos os homens e as mulheres de cidades e áreas rurais devem ocupar. A opressão é tamanha e real que se reflete em números: desde a Guerra da Coreia, em 1953, estima-se que cerca de 33 mil norte-coreanos tenham fugido do país para buscar refúgio na Coreia do Sul. A maioria dessas pessoas, aproximadamente 71%, são mulheres com idades entre 20 e 30 anos, visto que na Coreia do Norte elas são as que mais sofrem com abusos sexuais, violação dos poucos e básicos direitos, estupro, discriminação e casamento forçado.
Quando Kim Jong-un assumiu o cargo de seu pai, Kim Jong-il, em 2012, o número de refugiados despencou significativamente. No entanto, em 2016, aproximadamente 1.418 pessoas fugiram do país. Essa queda aconteceu devido às políticas cada vez mais severas e ao reforço na patrulha das fronteiras entre as Coreias e a China, para impedir que fujam esses “desertores”, como são vistos.
Uma vez que são capturados, eles são submetidos ao terror de qualquer norte-coreano: os campos de trabalho forçado, mais conhecidos como “campos de concentração da Coreia do Norte”.
Todos os tipos de pessoas podem ir para um campo de concentração no país: desertores, críticos do governo, cristãos e coreanos vindos do Japão, membros do partido sênior e desobedientes. Essas pessoas são homens, mulheres, crianças e até idosos. Uma vez dentro de um campo, eles nunca mais são libertados, portanto morrem lá dentro da mesma forma que crianças também nascem.
O campo Kwalliso Nº 22, mais conhecido como Campo 22 — considerado o Auschwitz-Birkenau da Coreia do Norte — está localizado na província de Hamgyong Norte, no condado de Hoeryong, no nordeste do país, perto da fronteira com a China. Até a década de 1990, ele foi apenas um dos quatro campos que existiam na província, mas se tornou o maior e mais populoso quando os demais fecharam.
Fundado em 1965, o Campo 22 é ilhado em meio a um vale com montanhas de até 700 metros de altura e abrange uma área de 225 km². O portão principal fica a 15 km de Kaishantun, na província de Jilin, na China. Ao longo de 8 km, a fronteira oeste é delimitada pelas margens do rio Tumen. Aproximadamente mil guardas patrulhavam a cerca elétrica de mais de 3 mil volts ao redor do muro, sem contar os 600 agentes munidos com fuzis, granadas manuais e cães treinados para matar.
Em meados de 1980, quando o Campo expandiu para outras áreas, foi dividido em três setores: Haengyong, a sede e centro carcerário dos prisioneiros; Chungbong-ri, onde havia mina de carvão, estações de comboios e alojamentos dos guardas e prisioneiros individuais; e Naksaeng-ri, Sawul-ri, Kulsan-ri e Namsok-ri, divisões de agricultura e alojamentos familiares.
Com uma população que já atingiu 50 mil prisioneiros, as informações que existem de como era a vida dentro do Campo 22 ou de qualquer outro são poucas, visto que só algumas pessoas conseguiram escapar deles. Uma dessas foi Shin Dong-hyuk, que deu uma entrevista ao programa 60 Minutos após ter nascido no campo Kaechon, mais conhecido como Campo 14, e vivido lá até conseguir fugir, aos 23 anos.
No Campo 22, as condições eram desumanas e doentias. Estima-se que aproximadamente 2 mil pessoas morriam a cada ano, especialmente crianças, devido à desnutrição. Era dado mingau de milho e repolho como refeição única e diária para os prisioneiros, por isso muitos se alimentavam de insetos, ratos e até de terra. No total, eram 365 gramas de comida por dia, portanto muitas crianças não sobreviviam até os 10 anos. Elas recebiam educação básica até os 6 anos, o suficiente para serem ideologicamente educadas.
Sem proteína e cálcio no organismo, as pessoas desenvolviam corcundas por ficarem muito tempo agachadas durante o trabalho e perdiam os dedos das mãos e dos pés por causa do frio.
Os idosos desempenhavam o mesmo papel que os jovens e, se ficassem doentes, eram abandonados em quarentena até a morte. As mulheres eram estupradas deliberadamente por qualquer um e assassinadas se ficassem grávidas. Gravidez só era relevada quando os próprios guardas faziam casamentos arranjados como forma de entretenimento.
O sofrimento era sinônimo de diversão, e o campo servia exatamente para esse propósito. De acordo com o ex-guarda Ahn Myong-chol, o governo os ensina que os prisioneiros são inimigos da classe, que devem ser destruídos através de punição e tratamento escravo, pois não são “seres humanos”.
Shin Dong-hyuk relatou que em Kaechon os guardas soltavam os cachorros ferozes para que matassem crianças a dentadas ou arrancassem seus membros. Cerca de 30% deles possuíam deformidades, e uma média de 2 mil tinham membros faltando por causa da tortura que sofriam. Shin teve a ponta de um dos dedos mutilada como punição por quebrar acidentalmente uma máquina enquanto trabalhava.
Shin se lembra que, aos 13 anos, foi enviado para um centro de tortura subterrâneo quando sua mãe e irmão foram acusados de tentarem fugir. “Eles me penduraram pelos tornozelos e me torturaram com fogo”, relatou.
No Campo 22, alguns métodos de tortura envolviam deixar o prisioneiro na ponta dos pés em um tanque cheio de água até o nariz por 24 horas; colocá-lo em um quarto-caixa sem espaço para sentar ou agachar por 3 dias ou 1 semana; fazê-lo ficar ajoelhado com uma barra de madeira inserida perto dos joelhos para impedir a circulação sanguínea — a maioria deles não podia mais andar depois disso e acabava morrendo. Em meio a isso, havia também experimentação humana com câmaras de gás e cirurgias mirabolantes realizadas por médicos em formação.
Acredita-se que as atividades do Campo 22 tenham sido encerradas em 2012, pois imagens de satélite mostraram o local com algumas torres demolidas, embora outras estruturas parecessem operacionais. Relatórios de agentes infiltrados apontam que 27 mil prisioneiros morreram de fome, e os 3 mil restantes foram transferidos para o campo de concentração de Hwasong.
Atualmente, o Comitê de Direitos Humanos na Coreia do Norte (HRNK) identificou 40 colônias de trabalho penal espalhadas por todo o país usadas com base nos mesmos princípios do Campo 22. Ainda que o número exato seja impossível de se determinar, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que pelo menos 70 mil norte-coreanos estejam presos nesses locais sofrendo todos os tipos de processo de desumanização.