Ciência
01/11/2022 às 10:00•5 min de leitura
A palavra fast fashion pode parecer estranha para você ou até mesmo desconhecida, porém, se é alguém que não viveu em baixo de uma pedra nos últimos anos, provavelmente já ouviu falar na Shein, a gigante varejista chinesa que vende roupas e acessórios online por preços acessíveis.
Apesar de ter alcançado todas as idades, a empresa – avaliada em US$ 100 bilhões em abril de 2022, segundo a Bloomberg –, ganhou destaque principalmente entre os jovens, potencializada ainda mais pelas mídias sociais de maior alcance no momento – TikTok e Instagram. A popularização se deu por suas peças inspiradas em alta costura e retiradas da última tendência nas passarelas, desfiladas de Maison Margiela a Balenciaga, por preços muito baixos, mesmo no Brasil, com a conversão do dólar e as taxas. Em média, uma pessoa pode gastar R$ 300 em 10 peças de vestuário compradas na Shein.
Poder 360/Reprodução)
E é o conceito de fast fashion que faz da Shein tão barata. Depois que os processos têxteis foram aprimorados com a Revolução Industrial no século XIX, o padrão de produção foi catapultado na década de 1990 com o barateamento tanto da mão de obra quanto da matéria-prima na indústria têxtil, consolidando-se em seu conceito: a produção rápida para o consumo rápido e o descarte rápido. Isso gerou maior rentabilidade para indústria da moda – responsável por movimentar US$ 1,7 trilhões da economia mundial –, gerando empregos e produtos com custo acessível.
Pelo outro lado, o fast fashion fez da indústria da moda a segunda mais poluente do mundo, devido à utilização de tinturas de baixa qualidade e tecidos; produtos insolúveis e à base de metais pesados; contribuindo para toneladas de emissões diárias de carbono para a atmosfera; e o aumento substancial de plástico nos oceanos.
Além desses impactos globais que reduzem o percentual de vida do planeta, está também o uso desenfreado da mão de obra escrava na indústria da moda, inclusive pela Shein.
(Fonte: Factual 900/Reprodução)
Em 17 de outubro desse ano, o lançamento do documentário Inside Shein Machine: UNTOLD, produzido pela emissora britânica Channel 4, ganhou a mídia e a internet ao revelar as condições e precarização do trabalho por de trás da vitrine bonita e atraente da Shein.
Ao infiltrar o repórter Panyu em uma das fábricas da gigante varejista, em Guangzhou, na China, foi descoberto que os empregados trabalham até 18 horas diárias, costurando, em média, 500 peças de roupa por dia, com direito a apenas uma folga mensal. Eles ganham cerca de R$ 0,20 por peça produzida, sendo que o primeiro pagamento do mês é retido pela empresa.
Em caso de erro na produção de alguma peça, as pessoas são penalizadas dois terços do salário diário. Em condições análogas à escravidão, eles trabalham sob circunstâncias que violam as leis trabalhistas chinesas, que prevê, no máximo, 40 horas semanais de trabalho, com teto de 36 horas extras por mês e uma folga semanal, devendo faturar cerca de US$ 4 mil mensal.
Entre a tristeza e exaustão, o documentário também capta mulheres lavando os cabelos durante os intervalos do almoço, comendo pequenas porções de comida em tigelas e lutando contra o sono. Nada ironicamente, a maioria dos empregados são imigrantes.
Em um e-mail ao site The Business of Fashion, a Shein declarou estar preocupada com as denúncias de trabalho escravo de seus parceiros – visto que o documentário foi feito em uma das fábricas terceirizadas da empresa –, e que estão cientes que isso viola o Código de Conduta acordado por todos os fornecedores da Shein.
(Fonte: Sourcing Journal/Reprodução)
“Qualquer não-conformidade com este código é tratada rapidamente e encerraremos parcerias que não atendam aos nossos padrões. Solicitamos informações específicas ao Channel 4 para podermos investigar”, complementou a Shein.
A resposta totalmente evasiva só adiciona mais uma vírgula em uma série de mistérios envolvendo a marca chinesa, que já existe há 8 anos no mercado, a começar pela sua origem. Não existe nenhum número de telefone ou contato com a imprensa online, sendo que até o nome de seu fundador permanece um enigma total.
Tudo o que a Shein construiu nesses 8 anos de mercado foi se apoiando apenas em marketing digital e blogueiros, responsáveis por venderem seus produtos igual água no deserto. O site norte-americano da marca executa um tipo de programa para influenciadores digitais de moda enviando peças para promoção ou publicidade e, dessa forma, alimentar sua relevância digital.
(Fonte: Refinery 29/Reprodução)
Shein é apenas uma parcela – embora bem significativa – no mar do problema que é o conceito de fast fashion, por trás de Zara, H&M, UNIQLO, Gap, Forever 21, Renner, Riachuelo, Primark, e entre outras marcas. O trabalho escravo se tornou, desde o surgimento dessa linha de produção rápida, uma das características principais depois dos impactos ambientais.
A Organização Internacional do Trabalho levantou que cerca de 260 milhões de crianças estão empregadas em todo o mundo, das quais 170 milhões estão envolvidas em trabalho infantil realizado abaixo da idade mínima exigida, ou que, devido à sua natureza ou condições prejudiciais, é totalmente considerado inaceitável para uma criança, além de proibido.
Apesar de o trabalho infantil ser proibido por lei na maioria dos países, ainda existe em muitas partes mais pobres do mundo, e muitas são recrutadas para trabalho escravo para alimentar a cadeia de suprimentos da moda, fabricando têxteis e roupas para consumidores da Europa à América.
A demanda global do fast fashion, apoiada na cultura do consumismo desenfreado, obriga as empresas a encontrarem fontes de mão de obra cada vez mais baratas, e isso envolve imigrantes e crianças, retirados de um plano de fundo socialmente vulnerável.
(Fonte: Pinterest/Reprodução)
“Há muitas meninas em países, como Índia e Bangladesh, que estão dispostas a trabalhar por preços muito baixos, e são facilmente trazidas para essas indústrias sob falsas promessas de ganhar salários decentes”, disse Sofie Ovaa, coordenadora da campanha Stop Child Labor.
Um relatório do Centro de Pesquisa em Corporações Multinacionais (SOMO) e do Comitê da Índia da Holanda (ICN) revelou que existem recrutadores dessas gigantes têxteis no sul da Índia convencendo os pais em áreas rurais extremamente pobres a enviar suas filhas sob falsas promessas de um emprego bem remunerado, acomodação confortável, refeições regulares e oportunidades de terem acesso a um direito básico: educação.
No entanto, essas crianças acabam abandonadas em galpões de fábricas, trabalhando por horas a fio, sem acesso ao mundo, mal alimentadas e ganhando centavos por peça produzida, ou, por vezes, nem isso.
(Fonte: Emily Elizabeth May/Reprodução)
As crianças são consideradas alvos atraentes porque são obedientes como trabalhadoras e fáceis de gerenciar, fazendo passar despercebido o crime que as empresas cometem. Dos 75 milhões de trabalhadores operários na indústria da moda pelo mundo, estima-se que menos de 2% deles ganham um salário digno.
É assim que esse comportamento servil se estende para o segundo grupo mais marginalizado no mundo: os imigrantes. As marcas têm como alvo os cidadãos em zonas de convulsões causadas pela guerra, mirando em refugiados sírios, por exemplo.
Desesperados por salários, visto que mal conseguem sobreviver, com dívidas a pagar a familiares, agências de recrutamento, corretores ou traficantes –, eles acabam aceitando a má remuneração, principalmente com as políticas rígidas de asilo ou imigração nos países para o qual imigram.
(Fonte: The Brazilian Report/Reprodução)
O que impede muitos de causar uma revolução diante à exploração desmesurada é a falta de voz, sobretudo, em países que não a exaltam e, pro vezes, tentam calá-la – afinal, poucos estão dispostos a ouvir que seu país é responsável por práticas de escravidão para que você possa continuar adquirindo o básico do consumismo: roupas. Os imigrantes têm medo de serem presos ou deportados, por isso nem se atrevem a deixar as fábricas, que acabam se tornando o seu próprio quarto, aumentando a linha de exploração.
Alguns são os casos de trabalhadores que reagem às condições repressivas das indústrias de fast fashion, e vão a público fazer denúncias, como é o caso de refugiados birmaneses na fronteira com a Tailândia, envolvidos em processo judiciais e regularmente fazendo greve contra seus empregados.
Em face a esse cenário terrível, é possível que esteja se perguntando onde está a justiça em meio a tudo isso. A resposta está na própria cadeia de suprimentos da moda que, devido a sua complexidade, é difícil para as empresas controlarem todas as etapas da produção. Além disso, não há mecanismos de fiscalização ou controle social, nada de sindicatos que possam ajudar os trabalhadores a lutar por melhores condições.
No final das contas, eles estão por conta própria.