Ciência
18/09/2023 às 04:00•6 min de leitura
Terra Nova, a pior expedição ao Polo Sul que o mundo já presenciou, começou como qualquer outra que teve impulso entre o final do século XIX e início do século XX: uma combinação de fatores que incluíam a busca pela exploração, pelo desconhecido, competição entre nações para adquirir avanços tecnológicos e científicos, e um enorme desejo de renome e prestígio.
Foram essas as motivações por trás da Idade Heroica da Exploração da Antártida, o período em que várias viagens exploratórias buscaram desvendar os mistérios do ponto considerado mais remoto e inóspito do globo, o Polo Sul.
Talvez muito mais que pelas descobertas para a humanidade, essas explorações entraram para a história ao desvendar a habilidade de sobrevivência do ser humano e sua extraordinária capacidade de arriscar a vida apenas por prestígio.
Robert Falcon Scott. (Fonte: Hulton Archive/Getty Images)
Quando o oficial da Marinha Real, Robert Falcon Scott, deu início ao que se tornaria a "pior viagem do mundo", em 15 de junho de 1910, ele já havia explorado a Antártida uma vez, em 1901.
Nascido em 1868, Scott se tornou um explorador por força maior. Desde os 13 anos, quando embarcou no navio-escola HMS Brittania, ele esteve envolvido com a carreira naval – então era certo que assim seguiria até seus últimos dias. Dois anos mais tarde, ele já havia se tornado um guarda-marinha e começava sua ascensão na Marinha Real.
Em 1889, Scott era um tenente especializado na nova tecnologia de torpedos, mas isso se provou pouco quando um desastre financeiro abateu sua família e ele se viu responsável por sua mãe viúva e duas irmãs solteiras. Precisando de uma promoção, em 1899, Scott se interessou por uma vaga como explorador em uma expedição antártica organizada pela Royal Geographical Society e a Royal Society.
(Fonte: Hulton Archive/Getty Images)
Apesar de não ter nenhuma experiência com exploração, tampouco com viagens polares, ainda assim Scott foi nomeado comandante da Expedição Antártica Nacional, a bordo do navio Discovery, que partiu da Inglaterra em 1901. Foi assim que ele conheceu Ernest Shackleton, que anos mais tarde se tornaria seu oponente na empreitada de conseguir chegar ao Polo Sul. Esse feito não foi alcançado naquela primeira expedição porque o terreno desconhecido os forçou a abandonar a ideia, se quisessem sobreviver.
Quando Scott retornou à Inglaterra, em setembro de 1904, para uma recepção calorosa, já havia se tornado um explorador e estava certo de que era isso que faria daquele momento em diante. Sendo assim, se apressou a captar fundos para conseguir terminar o que se propôs a fazer: alcançar o Polo Sul.
Nem mesmo a partida de Shackleton, em 1907, a bordo do seu navio Nimrod, o impediu de continuar tentando. E isso foi bom, afinal, seu concorrente só conseguiu chegar a 100 quilômetros do Polo Sul. O homem voltou para a Grã-Bretanha como um herói e recebeu até título de cavaleiro. Na mente de Scott, a marca a ser batida e o caminho ainda estavam livres.
(Fonte: Getty Images)
Finalmente, a expedição de Scott partiu da Baía de Cardiff, a bordo do seu Terra Nova, com intuito de explorar a parte da Antártida ao redor do Mar de Ross, descobrir mais sobre os animais, o clima e a geologia do local.
Ao longo do caminho, eles passaram pela África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, onde a expedição quase teve seu primeiro fim desastroso. Enquanto deixavam o país rumo ao mar de Ross, em 29 de novembro de 1910, uma forte tempestade quase condenou o baleeiro Terra Nova, pequeno demais para a carga que transportava. O navio foi quase inundado pela água, e teve suas bombas entupidas por uma pasta espessa de pó de carvão, sujeira e óleo, que o fizeram parar de funcionar.
Todos os tripulantes, até mesmo os cientistas, lutaram por horas no escuro para conseguir impedir que o Terra Nova fosse destruído ou naufragasse. Nisso, eles tiveram que abrir mão de muita carga, desde combustível a suprimentos. Os animais também sofreram, alguns morreram estrangulados pelas correntes que os impediam de derrapar pelo convés, e outros acabaram no mar ao se soltarem.
(Fonte: Hulton Archive/Getty Images)
Foram três noites de caos até que o mar se acalmasse e a tempestade parasse de tentar destruí-los. E parece que o número três se tornou um companheiro para os expedicionários, porque demorou quase três semanas para que atravessassem a crosta de gelo que abria caminho para o mar de Ross.
Em 2 de janeiro de 1911, eles avistaram o Monte Erebus, o enorme vulcão que domina a Ilha Ross, onde Scott pretendia montar acampamento na praia abaixo do Cabo Crozier, no extremo leste da ilha. No entanto, devido aos perigos que os penhascos de gelo ofereciam, ele optou por ir para o oeste e entrar no Estreito de McMurdo, escolhendo o Cabo Evans como o melhor lugar para o acampamento base.
(Fonte: Hulton Archive/Getty Images)
Em 25 de janeiro, uma vez que a base em Cabo Evans estava pronta, Scott partiu em sua empreitada para os preparativos da viagem rumo ao Polo Sul. Ele estimou que seus homens tinham cerca de um mês para estabelecer uma série de postos avançados de suprimentos ao longo da primeira parte do caminho. Isso era vital, visto que não havia como carregarem tudo o que precisariam.
O plano de Scott era deixar suprimentos em intervalos de uma distância significativa, mas o clima adverso e o desempenho dos pôneis e trenós motorizados que usou para isso agiram contra ele. No final das contas, seu último posto avançado, chamado "One Ton", foi estabelecido a cerca de 60 quilômetros do alvo, em 17 de fevereiro. Esse foi seu segundo maior erro.
Ao longo dos nove meses até o início da viagem ao Polo Sul, a equipe de Scott se manteve ocupada em Cabo Evans fazendo medições diárias, realizando curtas viagens de campo para fins de coleta ou mapeamento, e fazendo estudos sobre animais e a geologia do local. Os marinheiros e tratadores de animais se dedicaram a fazer ou alterar o que fosse necessário para a viagem, como botas de esqui, crampons, peças de trenó, barracas e outros equipamentos.
Em 1 de novembro de 1911, Scott e seus homens partiram com pôneis e cães rumo à sua tentativa em alcançar finalmente o Polo Sul. A princípio, o clima permitiu que avançassem de maneira considerável, mas isso mudou no início de dezembro, com neve torrencial seguida por um degelo que tornou a viagem extremamente difícil, tanto para os homens quanto para os animais.
(Fonte: Hulton Archive/Getty Images)
Os pôneis foram fuzilados, esfolados e sua carne armazenada em um posto avançado para ser usada como alimento para a equipe. Pouco antes de alcançarem a Geleira Beardmore, eles mandaram os cães de volta, e então eram apenas os 12 homens no planalto polar carregando seus trenós.
No último dia de dezembro, eles alcançaram o ponto de Shackleton e comemoraram com rações extras. Em 4 de janeiro, com cerca de 290 quilômetros pela frente até o Polo Sul, Scott enviou de volta o último grupo de apoio, restando uma equipe de quatro homens (Edward Wilson, Edgar Evans, Lawrence Oates e Birdie Bowers). A essa altura, os homens já estavam desnutridos com uma dieta inadequada e com a saúde extremamente fragilizada pela baixa temperatura.
Em 16 de janeiro, a equipe confrontou algo que Scott evitava há quase um ano: chegar ao Polo Sul era uma corrida publicitária. No mesmo ano em que Scott partiu em expedição, também o fez o norueguês Roald Amundsen, dando início a uma disputa silenciosa pelo título de primeiro lugar.
Scott só admitiu para si mesmo que a expedição não era mais pela exploração, mas por puro prestígio, quando viu a bandeira norueguesa tremulando no vento frio, marcando a chegada ao Polo Sul. O que o transtornou é que poderia ser a dos britânicos, se naquele 1 de novembro, quando partiram de Cabo Evans, não tivessem esperado por condições de tempo melhores.
Edgar Evans. (Fonte: Library of Congress/Reprodução)
Com a frustração pesando nas costas e com o título de segundo lugar, os britânicos enfrentaram a dura viagem de volta. Scott calculou que eles precisavam percorrer 33 km por dia se quisessem sair daquela região antes que as condições climáticas começassem a piorar. Afinal, eles ainda estavam sob o verão que passava pela Antártida naquela época do ano.
Em 25 de janeiro, eles chegaram a um posto avançado e conseguiram reabastecer seus suprimentos, mas não havia nada de proteína em estoque. A equipe já sofria com hemorragias nasais, forte desidratação e dores de cabeça causada pela fome. Os dedos de Evans estavam gangrenando e os transportadores Wilson e Scott não conseguiam mais se mover de tanta dor.
Em 4 de fevereiro, o estado de Evans piorou, espalhando desespero pelo grupo. Seus cortes e feridas supuraram e ele enfrentava dificuldades para respirar pelo nariz. De acordo com o diário de Oates, faltando 800 km para alcançarem o acampamento, Evans já havia perdido o juízo. Ele se soltou do cinto que os conectava e começou a se arrastar atrás da comitiva até que Scott o perdesse de vista e tivesse que voltar apenas para o encontrar “com a roupa desarrumada, as mãos nuas e congeladas e um olhar selvagem nos olhos”.
Edgar Evans faleceu naquela noite, dia 13 de fevereiro de 1912.
(Fonte: Hulton Archive/Getty Images)
Apesar de tentar se manter firme, a frustração, o cansaço e a iminência da morte enfraqueceram Scott. Além disso, o homem não conseguia mais andar e era improvável que os outros pudessem fazer muito por ele. “A amputação é o mínimo que posso esperar por enquanto”, escreveu ele em seu diário.
Apesar disso, em 21 de março, Bowers e Wilson tentaram chegar ao próximo posto avançado, o "One Ton", na esperança de conseguir comida e medicamentos para Scott, mas só conseguiram chegar até onde o comandante deveria tê-lo estabelecido, meses atrás. Aceitando que aquele seria o fim, eles voltaram ao mini acampamento e tiraram o pouco de tempo que tinham para se despedir.
Scott assumiu seu papel de mártir ao escrever ao almirante Sir Francis Bridgeman: “Eu não era muito velho para esse papel”. Ele lembrou que os mais jovens caíram primeiro, então significava que os mais velhos estavam dando um bom exemplo. Apesar disso, ele exaltou a coragem e dignidade de sua equipe que “morreria com um espírito ousado, lutando até o fim”. Em momento nenhum, ao longo das várias cartas que escreveu, Scott culpou sua organização defeituosa, responsável por aquele fim trágico; apenas o clima, a debilitação e o infortúnio.
(Fonte: Peter Macdiarmid/Getty Images)
Ele e a equipe ainda resistiram por nove noites até 29 de março de 1912, quando os ventos da neve tomaram conta e silenciaram os gemidos dos homens para sempre.
A notícia só foi entregue à nação britânica em 11 de fevereiro de 1913, quando ela mal havia se recuperado do rastro de horror deixado pelo naufrágio do Titanic, em abril do ano anterior. Robert Falcon Scott não entrou para a história da maneira que imaginava, e as décadas que seguiram após o anúncio da sua missão fracassada mais construíram uma imagem de um homem mal preparado que marchou com sua equipe para a morte do que um herói que desbravou a paisagem inóspita do Polo Sul.
"Se tivéssemos vivido, eu teria um conto sobre a dureza, resistência e coragem de meus companheiros, capaz de agitar o coração de cada inglês. Essas cartas penosas e nossos cadáveres, porém, devem contar a história", escreveu ele em sua carta intitulada "Mensagem ao Público". E sobre isso ele estava certo.