A dolorosa história das pessoas com lepra no Brasil do século XX

30/09/2023 às 06:004 min de leitura

A Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que em 2023 a hanseníase, mais conhecida como lepra, continua presente em 120 países, com 200 mil novos casos notificados todos os anos, enquadrando a doença milenar como uma condição tropical negligenciada. No Brasil, são 30 mil novos casos da doença, colocando o país como o segundo maior em número de casos, perdendo apenas para a Índia.

Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), essa negligência acontece porque alguns órgãos tomadores de decisão e segmentos da indústria farmacêutica não enxergam a doença, sua prevenção e tratamento como prioridade. A hanseníase tem cura e pode ser tratada de forma gratuita nas unidades de saúde no Brasil. O tratamento é via oral e feito com a combinação dos medicamentos dapsona, rifampicina e clofazimina.

Antigamente, no entanto, as pessoas eram perseguidas e exiladas, forçadas a viver longe da civilização e como animais. Essa era a vida dos leprosos no Brasil.

Os "lazarentos"

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

Causada pela bactéria Mycobacterium leprae, a lepra é documentada desde 600 a.C., aparecendo em textos asiáticos como uma doença chamada "kushta", que manifestava os mesmos sintomas, com a predominância de manchas pela pele, podendo estas serem vermelhas ou apresentarem perda de pigmentação.

Muito diferente do que se imagina, a doença afetou pessoas em várias partes do mundo e já era um problema antes de ganhar notoriedade durante a Idade Média. Por vezes, é dito que foi nesse período que a lepra se desenvolveu e evoluiu para uma pandemia, quando, na verdade, ela só se tornou mais proeminente devido a um aumento significativo da urbanização da Europa. Com cidades crescendo rapidamente em tamanho e densidade populacional, as condições de vida se tornaram insalubres, com falta de saneamento básico e acesso limitado a cuidados de saúde adequados, favorecendo a propagação de doenças infeciosas no geral, incluindo a lepra.

A proporção que a doença ganhou na Idade Média, unida a falta de compreensão sobre a transmissão dela e sua natureza contagiosa, levou ao estigma, muito permeado também por ideias religiosas. Assim surgiram as "casas de Lázaro", hospitais-colônias administrados por ordens religiosas para abrigar e isolar da sociedade aqueles acometidos pela doença.

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Essas instituições se espalharam por toda a Europa em uma tentativa de combater a doença inexplicável. Estima-se que uma em cada 30 pessoas que viveu naquela época foi infectada com a bactéria, considerada um "castigo de Deus".

(Fonte: Topical Press Agency/Getty Images)(Fonte: Topical Press Agency/Getty Images)

Ainda hoje, a ciência não descobriu como aconteceu a primeira infecção, tampouco a origem geográfica ou o padrão de transmissão da lepra. Pesquisas genômicas levam a acreditar que a doença tenha surgido na África Oriental ou no Oriente Próximo durante a era do Pleistoceno Superior (entre 10 mil a 82 mil anos atrás) antes das consecutivas imigrações humanas terem a espalhado pela Europa e depois para o resto do mundo, principalmente pelos exploradores e pelo tráfico de escravos.

Ainda que muita coisa tenha mudado ao longo do tempo até 1873, quando o médico norueguês G. H. Armauer Hansen descobriu o agente causador da doença, a bactéria Mycobacterium leprae, os julgamentos morais e o ostracismo dos doentes se mantiveram.

Os asilos-colônias

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

Apesar de acreditar-se que a doença já estava presente nas populações indígenas antes da chegada dos europeus, os processos migratórios e a colonização contribuíram para a disseminação da doença pelo Brasil.

Entre o século XIX e XX, houve um aumento significativo na imigração europeia no país, introduzindo a lepra por imigrantes de onde a doença era prevalente, como na Noruega, Alemanha e Portugal. Assim como na Europa Medieval, a doença se espalhou pelo Brasil devido às condições precárias nas quais as pessoas tinham que viver durante o processo de industrialização, que agrupou mais pessoas em áreas urbanas sem a infraestrutura necessária.

Nada ironicamente, os doentes foram encarados como "seres impuros", porque a lepra era confundida com outras doenças, principalmente às de pele e as venéreas. Acreditava-se que o contaminado havia mantido um contato corporal com outra pessoa, muitas vezes de natureza sexual, o que era considerado pecaminoso.

O documentário Hanseníase Hoje e Sempre, produzido pela Editora Caras com o apoio do Facebook Journalism Project do ICF (Internacional Center for Journalists), mostra que o medo de contrair a doença era tanto que os vizinhos dos contaminados enviados às colônias até ateavam fogo nas residências e nos pertences.

“Como essa pessoa não tinha mais emprego, ia viver à margem da sociedade, pois não tinha como subsistir”, explica a Dra. Yara Monteiro, coordenadora no Instituto Saúde em São Paulo e especialista no tema.

Rapidamente, cresceu a população de contaminados em situação de rua nos arredores das cidades, dormindo em barracas armadas em estradas com grande circulação de pessoas na esperança de conseguir doações.

Um recomeço forçado

(Fonte: Mario Tama/Getty Images)(Fonte: Mario Tama/Getty Images)

A alternativa que o governo brasileiro encontrou para controlar a disseminação da doença e desarticular esses grupos nômades foi a construção de colônias de leprosos, entre 1924 e 1962. A internação compulsória foi uma característica marcante na comunidade, e o Estado de São Paulo se destacou por sua política rigorosa.

Os leprosários foram construídos em locais distantes dos centros urbanos e onde tinha bastante circulação de vento. Afinal, a medicina ainda se apoiava na ideia de que doenças eram disseminadas pelos miasmas: vapores ou emanações fétidas transmitidas pelo ar. 

Talvez a lepra e toda a estigmatização que a acompanha tenha sido a epidemia que mais nivelou a sociedade. Não importava sexo, faixa etária, faixa socioeconômica ou posição social para aqueles que eram diagnosticados com a doença. Todos eram isolados no mesmo local, sob as mesmas condições precárias e tratados com o mesmo repúdio. Muitos dos internos perdiam os laços familiares para sempre porque eram abandonados por eles.

(Fonte: Getty Images)(Fonte: Getty Images)

Foram 40 asilos-colônias em todo o Brasil, sendo que 80% deles foram estabelecidos durante o governo de Getúlio Vargas, quando o presidente criou o primeiro Ministério da Saúde para lidar principalmente com a epidemia da doença.

O Hospital Colônia Itapuã, localizado em Viamão, a 60 km de Porto Alegre, foi a maior instalação do período Vargas. Construído em 1940, com 1.253 hectares, o asilo-colônia chegou a ter um contingente de 2.474 pessoas internadas permanentemente. Os hansenianos criaram uma nova vida dentro daquela mini-cidade, que dispunha de igrejas e até de um salão de festas.

Ao todo, ainda há cerca de 46 pessoas morando no local e muitas não querem deixar o lugar onde reconstruíram sua história, ainda que forçadamente.

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