Como a produção de palitos de fósforo destruía as mulheres no século XIX

25/03/2024 às 19:004 min de leituraAtualizado em 26/03/2024 às 15:46

A convocação de todos os jovens e homens adultos para lutar no front da Primeira Guerra Mundial na Europa, em 1914, deu início a um movimento incomum: o trabalho às mulheres. O governo britânico obrigou que elas assumissem os empregos de seus filhos ou maridos nas fábricas para que a produção não despencasse, afetando o país mais do que a própria guerra.

Em meio a todos os setores em que as mulheres foram admitidas, o que mais se destacou foi o de fabricação de munições de trinitrotolueno (TNT). Essas mulheres ficaram conhecidas como Garotas Canário, um apelido que surgiu devido à constante exposição tóxica que sofriam com o manuseio sem equipamento adequado dos componentes químicos da TNT, que deixava a pele com uma cor amarelo-alaranjada, tal qual a plumagem de um canário.

(Fonte: Messy Nessy Chic/Reprodução)
Trabalhadores em fábrica de munição. (Fonte: Messy Nessy Chic/Reprodução)

O trabalho trouxe a elas dores de cabeça, irritações cutâneas e náuseas, além de terem sofrido com anemia e icterícia, visto que o pó do TNT causa toxicidade hepática. Entre os 400 casos registrados de icterícia tóxica proveniente do manuseio dos agentes químicos, 100 foram fatais.

A história delas foi marcante, mas as mulheres já enfrentaram situações ainda mais letais para que indústrias e economias se sustentassem antes do século XX. Aqui está como as mulheres fabricantes de palitos de fósforo revolucionaram os direitos trabalhistas.

As luzes de atrito de Walker

(Fonte: GettyImages/Reprodução)
A fabricação de fósforo acabou com a vida de mulheres no século XIX. (Fonte: Getty Images/Reprodução)

As Garotas do Rádio ficaram receberam certo tipo de prestígio no início do século XX por pintarem mostradores de relógio com tinta autoluminosa nas salas da fábrica da United States Radium, na cidade de Orange, em Nova Jersey, Estados Unidos. A sociedade e algumas mulheres as invejavam e achavam fascinantes o ofício, até que partes dos seus rostos começaram a apodrecer devido ao manuseio e à alta exposição a níveis diários de radiação nas tintas.

Muitos registros históricos indicam que as Garotas do Rádio foram as primeiras mulheres a irem à justiça tentar obter algum tipo de compensação, mas as que construíram a indústria do palito de fósforo vieram antes.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Com a guerra, mulheres assumiram posições de trabalho tradicionalmente masculinas. (Fonte: Getty Images/Reprodução)

Em 1827, o inventor inglês John Walker tinha uma loja de químicos em Stockton-on-Tees, no nordeste da Inglaterra, e percebeu que sua formação em química e botânica lhe dava uma perspectiva única sobre as coisas. Naquela época, o mundo ainda se esforçava para encontrar uma maneira de fazer fogo de forma mais rápida e eficiente. 

Durante testes para desenvolver uma pasta combustível que acelerasse esse processo, ele friccionou um pedaço de madeira que estava usando para mexer sua pasta e acabou fazendo uma faísca e, em seguida, fogo.

Assim surgiram as denominadas “faíscas de atrito” de John Walker, que se tornaram extremamente populares. O problema é que o inventor acreditava que todos deveriam ter acesso a esses palitos que faziam fogo fácil, então nunca solicitou uma patente. Sendo assim, várias empresas surgiram e começaram a fazer negócio em cima de sua ideia. Até o início da década de 1830, Walker já estava falido.

Exploradas e doentes

(Fonte: Longevita Dental/Reprodução)
Mandíbula de fósforo. (Fonte: Longevita Dental/Reprodução)

Por volta de 1860, a produção de palitos de fósforo alcançou escala industrial e muitas empresas adicionaram o fósforo à pasta antes feita à base de enxofre em que os palitos eram mergulhados, visando dar ao produto uma chama maior e mais brilhante. No entanto, isso criou um problema imenso.

As cubas gigantes da mistura à base de fósforo começaram a emanar a toxicidade de sua substância, surtindo em consequências catastróficas para os trabalhadores após 3 a 5 anos de exposição constante.

Assim surgiu a condição "mandíbula de fósforo", que acometeu cerca de 11% das mulheres que fabricavam os palitos de fósforo. Uma vez que os tecidos moles da boca e da mandíbula são mais propensos a absorverem o fósforo, o primeiro indício das consequências eram as dores de dente, que não demoravam para cair. Depois, se formavam abscessos, pus e buracos tão grandes e profundos que o osso da mandíbula ficava exposto.

(Fonte: Wight on Family/Reprodução)
Mulheres trabalhando na Inglaterra vitoriana. (Fonte: Wight on Family/Reprodução)

As condições de trabalho nas fábricas da era vitoriana contribuíram para que a condição se tornasse endêmica, associada ao nível de fabricação do produto. As mulheres, pré-adolescentes e adolescentes, eram submetidas a uma jornada de trabalho que variava entre 12 a 16 horas diárias, amontoadas em salas claustrofóbicas cheias de cubas liberando fumaça tóxica para destruir sua saúde e seus corpos.

Como se isso não bastasse, elas viviam sob constante pressão, ganhando um salário de 4 xelins, o equivalente a 12 centavos, baseado em quantas remessas de palitos de fósforo elas faziam em cada turno. 

As mulheres raramente levavam para casa o que ganhavam, visto que eram obrigadas a pagar pelo próprio suprimento, como escovas de dentes, e saldar multas arbitrárias que recebiam de seus empregadores.

A salvadora

(Fonte: History Extra/Reprodução)
Greve das mulheres fabricantes de fósforo. (Fonte: History Extra/Reprodução)

Em 1888, Annie Besant escreveu um artigo ao jornal The National Reformer chamado "White Slavery in London", advogando em defesa das mulheres que trabalhavam nas fábricas de palito de fósforo e estavam morrendo sistemicamente devido às condições de trabalho e à exposição a componentes nocivos à saúde.

Por meio de entrevistas com funcionárias, a escritora expôs tudo o que sabia sobre a vida fabril no geral, mas suas acusações se concentraram na fábrica Bryant & May. Com a repercussão sem precedentes do seu trabalho, Besant foi informada que as funcionárias estavam sendo intimidadas pelos capatazes da fábrica na tentativa de descobrir quem havia falado com a imprensa, resultando em demissões massivas.

Em defesa, Besant não só iniciou uma campanha para compensar as trabalhadoras pela renda e emprego que perderam, como também apelou ao público que comprasse produtos apenas de empresas que pagassem salários decentes, o que não incluía a Bryant & May. Não só pessoas doaram, sensibilizadas com a causa, como outros jornais começaram a falar sobre a história.

Annie Besant. (Fonte: Roman Road London/Reprodução)
Annie Besant. (Fonte: Roman Road London/Reprodução)

A empresa então passou a coagir seus empregados a assinarem um termo alegando que estavam satisfeitos com as condições de trabalho em suas instalações. Em vez de fazerem isso, mais de 1.400 funcionários se reuniram e declararam greve.

As mulheres saíram às ruas para protestar, e os apoiadores não só se uniram em solidariedade, como fizeram doações para repor os salários que elas estavam perdendo. Quando se dirigiram ao Parlamento, o governo não teve outra alternativa senão ouvi-las e, em questão de semanas, a greve chegou ao fim.

As mulheres conquistaram uma vitória não só para si em quesito de direitos trabalhistas, como também para outros funcionários, formando um sindicato responsável por disputas futuras e por supervisionar a mudança para melhores salários e condições mais seguras de trabalho. 

Assim nasceu o Sindicato das Mulheres Trabalhadoras, que revolucionou a organização dos trabalhadores na história britânica, servindo de modelo para o mundo.

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