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20/07/2023 às 13:00•5 min de leitura
Não temos mais tempo. Uma pesquisa do Bureau of Labor Statistics mostrou que 39% da população dos Estados Unidos passou seu tempo livre trabalhando em 2020, em comparação com 43% das pessoas de 2019. Em uma entrevista ao Gettysburg College, a escritora Annie Dillard afirmou que o trabalho tem um enorme impacto na qualidade de vida e no nosso tempo.
Consequentemente, na maioria dos casos, isso significa que apelamos ainda mais para uma alimentação nada saudável. Um relatório de 2021 do The Global Nutrition Report (GNR) revelou que 48% da população mundial sofre de má nutrição relacionada a uma dieta recheada de alimentos ultraprocessados. A análise também descobriu que 40% dos adultos (2,2 bilhões de pessoas) estão com sobrepeso ou obesos. As "mortes evitáveis", oriundas de dietas pobres, cresceram 15% desde 2010, se tornando agora responsáveis por um quarto de todas as mortes de adultos.
Pode parecer exagero dizer que faz mal optar por um miojo ou hambúrguer de fast food durante o horário de almoço, mas eles são responsáveis por matar em média 57 mil pessoas por ano no Brasil, conforme um estudo feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade de São Paulo (USP) e Universidad de Santigo de Chile.
O que vale ressaltar, porém, é que a presença cada vez maior desse tipo de alimento em nosso cotidiano não é culpa da falta de tempo, mas de uma verdadeira tirania imposta pela indústria alimentícia de ultraprocessados.
(Fonte:GettyImages/Reprodução)
Alimentos processados fazem parte da dieta humana há pelo menos 250 mil anos, quando começamos a usar o fogo para cozinhar, melhorando a digestibilidade e a palatabilidade dos alimentos e dando mais segurança para quem os ingere. O homem pré-histórico percebeu que a comida durava mais quando cozida, podendo ser armazenada por alguns dias dependendo do seu tipo.
As civilizações antigas descobriram o sal como o primeiro tipo de conservante considerado essencial. Alimentos em salmoura ou defumados foram cruciais, principalmente para os soldados em guerra e durante quebras de safras ou fenômenos da natureza, como nevascas.
Nicolas Appert. (Fonte: GettyImage/Reprodução)
Técnicas de conserva, salga, defumação, fabricação de queijo, panificação e até secagem ao sol, que envolviam mudanças químicas e enzimáticas básicas na estrutura dos alimentos quando estavam em sua forma natural, prevaleceram praticamente inalteradas até o início da Revolução Industrial.
Apesar de os processos industriais terem alavancado o conceito dos alimentos processados, foi a máquina da guerra, mais uma vez, que deu início a tudo. Em 1804, durante as Guerras Napoleônicas, o inventor francês Nicolas Appert criou a primeira técnica de engarrafamento hermético de alimentos, visando atender às necessidades das tropas francesas. Nove anos mais tarde, o comerciante inglês Peter Durand sofisticou o método ao registrar a primeira patente para a conserva de alimentos em latas.
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A indústria dos alimentos processados precisou encontrar com a estrutura social e o período bélico de 1900 para finalmente entrar no caminho que conhecemos hoje. Na primeira metade do século XX, a ideia que se tinha da mulher americana ideal era que ela fosse mãe e dona de casa em tempo integral, criando os filhos com excelência, fornecendo o apoio emocional necessário aos seu marido, contribuindo para a sociedade, e dando conta dos afazeres domésticos – inclusive o ato de cozinhar.
Em comitês e assembleias populares, elas declararam que estavam cansadas de preparar refeições do zero e a indústria alimentícia escutou a queixa como uma oportunidade de facilitar essa tarefa, impulsionando para o mercado alguns tipos de alimentos enlatados e congelados muito utilizados durante a Primeira Guerra Mundial. Em resposta, o setor industrial lançou ao mercado fogões a gás, geladeiras elétricas modernizadas e outros utensílios eletrodomésticos que otimizariam o tempo e custo das pessoas. Era uma mão lavando a outra.
A segunda onda de inovação aconteceu no pós-guerra modernizado de 1945 a 1991, trazendo a fabricação de alimentos em massa considerados “mais tecnológicos”, ideais para uma sociedade consumista que se estabelecia em um mundo mais desenvolvido. Foi assim que surgiram os ultraprocessados. Diante de bolachas recheadas e embutidos, o setor industrial precisou responder na mesma intensidade, lançando de micro-ondas a liquidificadores. Tudo isso constituiu o que conhecemos hoje como “culinária de conveniência”.
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E é aqui que precisamos estabelecer um limite. Por muito tempo, nós processamos alimentos, e isso significa que mudamos seu estado in natura para prolongar sua vida útil, tornando-o seguro para armazenar ou comer. Em muitos casos, esse método, do enlatamento à fermentação, aumenta o valor nutricional e até melhora o sabor do alimento.
Por outro lado, os alimentos ultraprocessados são feitos com métodos e ingredientes em escala industrial, projetados apenas para serem extremamente saborosos e convenientes para consumo. Contendo altas concentrações de corantes, estabilizantes, realçadores de sabor, emulsificantes e agentes antiespumantes, os ultraprocessados carregam alto teor em gorduras, açúcares e sódio.
É um consenso científico que esse tipo de alimento não tem nenhum valor nutricional e que está associado a uma verdadeira epidemia de Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), dentre as quais se destacam o infarto, câncer, hipertensão arterial e diabetes. Bolacha, pizza congelada, salsicha, refrigerante, sorvete e produtos de panificação estão associados às 57 mil mortes no Brasil em 2019, sendo que apenas 16% dos brasileiros os consome, em comparação a 60% dos norte-americanos.
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O American Journal of Preventive Medicine descobriu que as bebidas açucaradas estão associadas a cerca de 184 mil mortes globais de adultos a cada ano. O estudo, publicado em setembro de 2022, também encontrou uma associação significativa entre alimentos ultraprocessados e risco de câncer colorretal. Os homens que consumiram taxas mais altas desses alimentos têm 30% de chance de desenvolver a doença.
Mas não estamos aqui para fechar os olhos para o papel importante que os alimentos ultraprocessados desempenham em uma sociedade desigual, em que os 10% mais ricos do mundo ganham 52% da renda mundial, enquanto os 50% mais pobres recebem apenas 8,5% do total, mas para lembrar que sua atuação é uma pedra angular.
Em países subdesenvolvidos com maior índice de pobreza, apesar de os ultraprocessados não estarem presentes em larga escala, são considerados a única opção de uma alimentação minimamente decente, sobretudo nos centros urbanos, onde é mais difícil ou não há acesso a alimentos produzidos localmente.
O problema é que a indústria alimentícia ocupou toda a disponibilidade de alimentos saudáveis com seus preços baixos, marketing e técnicas obscuras de produção para fazer as pessoas continuarem comprando e comendo ultraprocessados. Isso não só gera uma falsa sensação de status como de exposição a diferentes culturas e culinárias. Afinal, quem nunca se sentiu próximo da Coreia do Sul ao comprar um pote de topokki, o típico bolo de arroz cozido?
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No estudo “A concentração de nutrientes nos alimentos é um comportamento universal”, publicado na Nature Food, os pesquisadores Giulia Menichetti e Albert Barabási construíram um banco de dados contendo mais de 50 mil itens alimentares da rede de supermercados Walmart, Target e Whole Food Market. Eles descobriram que 73% da oferta de alimentos nos EUA são de ultraprocessados, sendo que estes são em média 52% mais baratos do que alternativas menos processadas.
Nos EUA e em países da Europa, o excesso de espaço dos ultraprocessados pode ter nascido de uma cultura. “No Brasil, não importa se você é rico ou pobre, você cresce comendo arroz e feijão. O problema para vocês, no Reino Unido, é que não sabem o que é o seu arroz e feijão”, disse Carlos Augusto Monteiro Lobo, o pesquisador brasileiro responsável pela classificação NOVA de alimentos, em matéria ao The Guardian.
E ele não está errado. Nesses países, a relação com os ultraprocessados é extensa e remonta a tantas décadas que os produtos já se tornaram o que chamam de soul food. Desde a infância, as pessoas crescem comendo panquecas processadas da marca Findus a milkshakes Angel Delight, cumprindo o desejo sádico das empresas: criar raízes.
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Desse modo, as alavancas capitalistas da indústria de ultraprocessados facilmente derrubam das mãos do consumidor opções saudáveis. Ao analisar um grupo de estudo de Maryland, o pesquisador de nutrição Kevin Hall descobriu que o cidadão médio chega a gastar 40% a mais em suas compras para uma dieta livre de ultraprocessados.
Já ficou mais do que claro que essa tática da indústria é infalível, e quem se opõe a ela está sujeito a retaliação, como aconteceu com Monteiro, que foi fortemente perseguido e contestado apenas por disseminar o quanto esses alimentos são nocivos à saúde. Até porque, em termos econômicos, a palavra "conscientização" pode implicar em queda na aderência dos produtos e transformações que custariam caro ao setor.
Em 2014, após o número de jovens adultos obesos ter dobrado entre 2002 e 2013 no Brasil (indo de 7,5% para 17,5% da população), o governo instaurou campanhas e diretrizes radicais para conscientizar o país a comer alimentos mais saudáveis e evitar qualquer tipo de processado, ao menos ao longo da semana.
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Se isso tivesse adiantado, segundo o estudo da USP, Unifesp e Universidad de Santiago de Chile, mais de 57 mil pessoas não morreriam por ano até hoje em decorrência do consumo desenfreado de ultraprocessados. Na visão dos especialistas, o problema do país é que, apesar de suas campanhas informativas, ele acumula um histórico de prioridades erradas, como conceder subsídios e incentivos fiscais que barateiam os produtos industrializados, enquanto dá pouco suporte à produção de frutas e legumes.
Victor Aguayo, chefe de nutrição da Unicef, disse que há uma necessidade urgente em mudar o ambiente alimentar para tornar as opções saudáveis fáceis, acessíveis e disponíveis. Mas como fazemos isso quando a atuação do poder público de vários países não facilita pesquisas sobre os perigos dos ultraprocessados e falha em melhorar a qualidade da alimentação, simplesmente porque estão sob a sombra de um setor que, só no Brasil, gera 2 milhões de empregos em toda sua cadeia e recolhe R$ 16 bilhões em impostos?