Ciência
28/09/2020 às 15:00•4 min de leitura
A instalação de tratamento de combustível de urânio da Japan Nuclear Fuel Conversion (JCO) — uma empresa subsidiária da Sumitomo Metal Mining Co — está localizada ao longo da costa do oceano Pacífico Norte, em Tokaimura, na Prefeitura de Ibaraki, a cerca de 120 km a nordeste de Tóquio.
Inaugurada em 1966 e estabelecida como a 1ª usina nuclear do Japão, ela apresenta 3 reatores auxiliares de conversão de urânio: o reator 1 com capacidade anual de cerca de 220 toneladas por ano para baixo enriquecimento (por volta de 5%); o reator 2 com capacidade de 495 toneladas de urânio por ano para baixo enriquecimento (menos de 5%); e o reator 3 com capacidade anual superior a 3 toneladas de urânio para alto enriquecimento (sem ultrapassar 20%).
O processo de preparação do combustível nuclear consistiu na dissolução do pó de óxido de urânio em ácido nítrico em um tanque de dissolução, seguido pela transferência dele (já como solução de nitrato de uranila pura) para uma coluna de armazenamento que fazia a mistura antes de ser transferida para um tanque de precipitação.
O processo foi bem pensado e desenvolvido com base nos requisitos gerais de licenciamento para limitação de massa e volume tanto do tanque quanto da coluna de armazenamento, que definia a quantidade de material transferido para o tanque.
No entanto, em novembro 1996, o procedimento de trabalho da usina foi modificado sem a permissão das autoridades. O objetivo era permitir que o óxido de urânio fosse dissolvido em baldes de aço inoxidável ao invés do tanque de dissolução, tudo para acelerar o processo ao despejar a substância diretamente no tanque de precipitação.
Desse modo, o que era para acontecer na coluna de armazenamento foi feito por agitação mecânica, impedindo um controle de criticalidade (uma reação em cadeia de fissão autossustentável). Para piorar, não havia um controle da quantidade despejada no tanque de precipitação de 100 litros, só aumentando o risco de algo dar errado.
Em 29 de setembro de 1999, Hisashi Ouchi (35), Masato Shinohara (39) e Yutaka Yokokawa (54) estavam preparando o combustível para despejar no reator JOYO — o de número 3 da usina. Apesar de exercerem a função há muitos anos, eles não tinham nenhum conhecimento científico de como todo o processo funcionava, portanto só estavam cumprindo ordens.
Eles dissolveram o pó de octóxido de triurânio em ácido nítrico nos baldes de aço inoxidável e despejaram a solução diretamente no tanque de precipitação. Foram 16 litros de óxido de urânio enriquecido a 18%, mais 8 litros de urânio-235 distribuídos entre 4 baldes.
Na manhã de 30 de setembro daquele ano, quando o volume alcançou 40 litros, o equivalente a 16 quilos de urânio, uma capacidade muito maior do que a indicada, a massa crítica necessária para iniciar uma reação de fissão nuclear foi alcançada, mantida e acompanhada pela emissão de neutrões e radiação gama.
Na ocasião, Ouchi e Shinohara misturavam o combustível no tanque enquanto Yokokawa, que deveria inspecionar esse processo, estava sentado a uma mesa cerca de 4 metros de distância dos colegas. Era aproximadamente 10h35 quando Ouchi acrescentou o 7º balde de nitrato de urânio e viu um clarão azul que se espalhou por todo o local. A criticalidade havia acontecido, causando a fissão nuclear e disparando uma rajada de raios gama e nêutrons.
Imediatamente, eles vomitaram, sentiram falta de ar e começaram a passar mal. Os homens desmaiaram assim que colocaram os pés na sala de descontaminação. O desastre nuclear estava acontecendo.
Não houve explosão, mas a reação disparou o alarme para imediata evacuação. Dos 39 edifícios residenciais dentro de um raio de 350 metros da usina, 161 pessoas foram evacuadas e só foram autorizadas a retornar a suas casas após 2 dias. Os 3 trabalhadores, porém, não tiveram a mesma sorte.
Ouchi e Shinohara foram expostos à 17 sieverts de radiação, sendo que 8 sieverts já são o suficiente para causar uma morte, mesmo com tratamento. Enquanto os produtos da fissão contaminavam o prédio e os arredores da usina, eles foram levados para o Hospital Mito.
Os médicos disseram durante uma testagem que os cromossomos de Ouchi foram “destruídos como vidro” devido à letal exposição que ele sofrera, tanto que a sua contagem de glóbulos brancos caiu para quase zero e seus órgãos estavam entrando em colapso por conta das graves queimaduras internas. Uma vez sem cromossomos, as células do homem não podem se regenerar, resultando na falha irreversível de seu sistema imunológico.
Ouchi foi considerado a única pessoa em todo o Japão a receber uma quantidade tão mortal de radiação em tão pouco tempo. Estima-se que ele tenha sido exposto a uma quantidade de energia equivalente à do hipocentro do bombardeio de Hiroshima.
Em 1 semana de hospitalização, os médicos se mobilizaram para fazerem o 1º transplante mundial de células-tronco periféricas para que Ouchi pudesse gerar glóbulos brancos novamente. A irmã dele era compatível e doou as células. Alguns dias depois, a pele dele começou a descamar e ficar exposta em carne viva, sem nenhuma membrana de regeneração.
Sem conseguir respirar, ele declarou: “Não aguento mais. Eu não sou uma cobaia”. Porém, os médicos não obedeceram à vontade dele e o colocaram em coma induzido. No 18º dia, a contagem de leucócitos dele voltou ao normal, mas 1 semana depois os exames acusaram que a radiação estava atacando as células transplantadas. No 27º dia, o intestino de Ouchi começou a “derreter”, e em 3 semanas ele sofreu de uma hemorragia contínua.
Ele chegou a receber 10 transfusões de sangue em 12 horas, à medida que começou a perder cerca de 10 litros de líquidos por dia através da carne, de modo que precisaram envolvê-lo em gaze. Com sangue saindo até pelos olhos, a esposa e familiares de Ouchi pediram aos médicos que o sofrimento do homem acabasse, mas não foram ouvidos. Em 1 semana, os músculos do homem começaram a cair.
No 59º dia, quando o coração de Ouchi parou 3 vezes em menos de 40 minutos, ele foi ressuscitado. Após muito sofrimento desnecessário, no 83º dia no hospital, Hisashi Ouchi morreu de falência múltipla dos órgãos, em 21 de dezembro de 1999.
Por outro lado, seu colega Shinohara teve um destino menos cruel, ainda que igualmente doloroso. Ele conseguiu se recuperar bem no início de 2000, mas em fevereiro contraiu pneumonia e foi colocado em um respirador. A última mensagem que escreveu para sua família foi: “Mamãe, por favor”. Ele morreu em 27 de abril de 2000 de falência múltipla dos órgãos. Yokokawa foi o único que conseguiu se recuperar.
A morte dos dois trabalhadores serviu para debater a relação do Japão com a energia nuclear e também para punir Tokaimura pelo seu histórico de tomar atalhos para acelerar a produção sem pensar em seus funcionários. O desastre foi considerado o pior envolvendo radiação nuclear no país antes do de Fukushima.
Foi concluído que o desastre aconteceu por erro humano. Seis funcionários foram presos e acusados de negligência, inclusive Yokokawa, o qual afirmou “esquecer” que o nível havia sido ultrapassado. Ainda assim, isso não teria acontecido se a usina seguisse os protocolos para usar os equipamentos corretamente.