Artes/cultura
21/12/2020 às 15:00•4 min de leitura
A Uganda está entre um dos países mais pobres do mundo, apesar de sua economia ter aumentado cerca de 7% desde 2008 – uma curva muito significativa para uma nação que foi devastada por guerras e corrupção durante décadas.
Muito embora seja considerado um país seguro, as fronteiras sofrem com um policiamento precário que viabiliza o fluxo constante de comércio ilícito, tráfico e todo o tipo de imigração. Além disso, com sua população majoritariamente cristã, com cerca de 83,9% dos habitantes, o extremismo religioso (que já matou 5 milhões de habitantes no país) continua sendo uma sombra terrível sobre a história dos ugandeses, principalmente em relação ao que aconteceu há 12 anos.
Quando Joseph Kony fundou o grupo Exército de Resistência do Senhor (LRA), em 1987, a sua intenção era lutar contra a opressão do governo, apoiar as minorias e marginalizados do norte de Uganda. Porém, com o tempo, ele acabou se perdendo em meio aos próprios propósitos, deixando que a ideologia o controlasse.
De repente, o grupo voltou-se contra seus apoiadores, e Kony decidiu iniciar um processo de “purificação” do povo Acoli, a fim de transformar o país em uma teocracia. Ele se declarou “porta-voz de Deus” após supostamente ter recebido 13 espíritos, incluindo o fantasma de um chinês. Com todo esse misticismo, bem como um nacionalismo acoli exacerbado e pervertido, repleto de um fundamentalismo cristão apocalíptico, o LRA firmou sua base nos Dez Mandamentos e na tradição acoli local, além de se tornar uma força militar.
Foi visando esse processo que Kony se tornou um criminoso, responsável pelo sequestro de mais de 66 mil crianças nos últimos 22 anos para transformá-las em soldados projetados para matar todos que vão contra os princípios da LRA. Submetidas à lavagem cerebral, intimidação e uso pesado de drogas, as crianças também são recrutadas para serem escravas sexuais, sendo violentadas em “prol da causa LRA”. Entre 1986 e 2009, estima-se que mais de 2 milhões de pessoas foram desalojadas por causa da facção de Kony.
Em 2005, o Tribunal Penal Internacional indiciou o homem por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, porém ele não conseguiu ser capturado pelas forças da Interpol. Desde os tratados de paz de Juba em 2006, a LRA parou de operar em Uganda e se espalhou pela República Democrática do Congo (RDC), República Centro-Africana (CAR) e pelo Sudão do Sul.
Assim que a LRA se mudou para o Congo, muitos combatentes se recusaram a oprimir o povo congolês e decidiram desertar. Eles foram abrigados ou ajudados a se esconderem da maioria dos habitantes das comunidades locais. Portanto, como forma de punição contra essas pessoas, Kony decidiu lançar uma onda de ataques contra eles.
A guerra começou em meados de setembro de 2008, com invasões às comunidades para massacrar qualquer um, fosse criança ou idoso. Houve raptos, estupros coletivos, queima de pessoas vivas, enforcamento, decapitação e qualquer outro tipo de violência grotesca. No entanto, o pior foi reservado para a noite de Natal, pois Kony sabia que haveria muitas pessoas reunidas.
Sabendo da orquestração do massacre, o exército da Uganda com o apoio dos exércitos do Congo, Sudão do Sul e República Centro-Africana, atacaram o quartel-general da LRA no Parque Nacional Garamba do Congo, próximo da fronteira com o Sudão. Contudo, em vez de matarem ou prenderem Kony, os agentes militares decidiram montar um ataque aéreo a mais de seis acampamentos dos rebeldes em meio às florestas do país.
Porém, isso serviu apenas para reavivar o ódio dos conflitos que Kony tinha se destinado a enfrentar quando estava na Uganda e seu propósito ainda era genuíno. O dia do massacre então se tornou uma verdadeira guerra civil com dupla sede de punição.
Ao todo, cinco aldeias do Congo foram atacadas. Os homens eram os que morriam primeiro. Só de cuecas e com os braços amarrados atrás das costas, eles eram decapitados com facões ou tinham suas cabeças golpeadas pelos rebeldes com paus até que seus crânios estilhaçassem.
Quanto às mulheres e crianças, elas tinham seus lábios cortados como um aviso para “não falarem mal dos rebeldes” e seus pescoços eram torcidos até que quebrassem, por vezes sendo violentadas e mutiladas em seguida. Seus cadáveres eram queimados ou dispensados em uma pilha de corpos para que apodrecessem.
Acredita-se que a aldeia de Faradje foi a primeira a ser invadida. Acontecia um concerto natalino organizado pela Igreja Católica quando os homens chegaram. De acordo com a Human Rights Watch, aproximadamente 150 pessoas foram mortas, sendo que mais de 160 eram crianças, e 20 adultos foram sequestrados pela facção.
Na manhã de 25 de dezembro, a aldeia Batande foi atingida durante o almoço de Natal, após o serviço religioso. Homens e crianças foram arrastados e mortos a aproximadamente 40 metros da igreja local. Mulheres e meninas foram levadas em pequenos grupos às florestas e estupradas antes de serem mortas. Das 80 pessoas, apenas 6 sobreviveram. Antes de irem embora, os rebeldes ainda descansaram sobre o banquete que os moradores haviam preparado e cochilaram em meio aos zumbidos das moscas que pairavam pelos cadáveres.
Em Duru, 75 pessoas foram mortas e a igreja local incendiada. Em Bandagi e Gurba, 48 e 213 vidas, respectivamente, foram tiradas sem piedade.
“Aconteceu tudo muito bem calculado”, revelou Joseph Kpayajadia, de 58 anos, um fazendeiro que se escondeu na grama e assistiu em silêncio o filho ser morto. “Eles mantiveram todos juntos em um grupo, e então levavam 5 ou 6 pessoas de cada vez ao mato para matar. Depois voltavam para pegar mais gente”.
Somando a primeira onda de ataques que ocorreu em setembro de 2008 e os massacres no Natal, estima-se que mais de mil civis tenham morrido e 476 crianças sido sequestradas para a conversão. Os dados são imprecisos devido à inacessibilidade que o governo tem para entrar nas densas florestas do Congo, além do cenário completamente inseguro. No entanto, segundo declarações das pessoas que sobreviveram e fugiram, muitas aldeias foram abandonadas com pilhas de cadáveres que nunca foram contados.
No total, mais de 100 mil habitantes foram deslocados pelas autoridades congolesas. Os grupos humanitários e as próprias vítimas criticaram a intervenção do governo, alegando que os militares os colocaram na mira da guerra ainda mais.
Controvérsias foram erguidas quando a barbárie ganhou o mundo e Kony se pronunciou. Ele revelou que a LRA não era responsável pelos massacres em Doruma e outras aldeias, afirmando que eles foram realizados por uma unidade miliciana do exército na tentativa de difamar ainda mais os rebeldes. O exército, por sua vez, negou as acusações.
Em abril de 2017, as forças militares da Uganda e dos Estados Unidos comunicaram que a LRA não representa mais uma ameaça ao país, depois de uma força-tarefa de mais de 9 anos para tentar neutralizá-la.
Porém, até hoje ninguém conseguiu localizar o paradeiro do líder, terrorista e lunático Joseph Kony. E, apesar do anúncio das forças militares, os ugandeses ainda temem cada véspera de Natal.