Ciência
21/01/2021 às 15:00•4 min de leitura
Por incrível que pareça, foi o descontrole de John Harvey Kellogg que deu origem a uma multinacional que atualmente domina o mercado de cereais matinais em 180 países, gerando uma receita de mais de US$ 13 bilhões por ano.
Kellogg teve seu primeiro contato com a religião em 1856, aos 4 anos de idade, quando se mudou com a família da cidade de Tyrone (Michigan, EUA) para Battle Creek (Michigan, EUA), que ficava só a 160 quilômetros de onde nasceu.
Na época, só havia a Igreja Adventista do Sétimo Dia, fundada pela escritora Ellen Gould White, que pregava a crença na segunda vinda de Jesus Cristo e na preparação de seus fiéis para a iminência do Apocalipse.
Ao longo de sua adolescência, Kellogg começou a se familiarizar ainda mais com as convicções religiosas de White, principalmente depois que passou a ser revisor ortográfico dos livros que ela publicava pela própria editora. A mulher pregava que a beleza interior também tinha a ver com um corpo extremamente saudável, por isso escrevia artigos de saúde que incentivavam uma dieta vegetariana.
A princípio, Kellogg desejava se tornar professor, porém a pressão de White foi tão grande para que ele fosse médico e cuidasse de seu Instituto de Reforma de Saúde Ocidental, que ele não teve como negar quando White se ofereceu para pagar seus estudos na área.
Kellogg sempre lutou contra a polução e as ereções noturnas durante a puberdade, principalmente porque sentia a necessidade de se masturbar constantemente, porém seus princípios religiosos condenavam a prática. Ele cresceu como um homem lunático, e a faculdade serviu apenas para fortalecer a sua vontade de abolir a prática sexual. Até mesmo o sexo entre os casais ele julgava algo “contra a natureza”, tanto que se manteve no celibato até em seu próprio casamento, com Ella Eaton, por mais de 40 anos.
O médico voltou da faculdade acreditando que anemia, acne, diabetes, úlcera, epilepsia, câncer e até mesmo esquizofrenia eram doenças oriundas dos péssimos hábitos alimentares das pessoas do século XIX. Uma vez trabalhando no instituto de White, que renomeou para Sanatório de Battle Creek, ele passou a recomendar — por meio de receitas, cartilhas de saúde e livros que escreveu — uma dieta rica em grãos integrais, com laxantes para limpezas intestinais, abstinência de carne, tabaco e bebidas alcoólicas.
Kellogg tinha a teoria de que todas essas restrições não só preveniriam doenças como também evitaria que homens e mulheres desenvolvessem desejo sexual ou que se masturbassem.
Ele se enxergava como uma espécie de “guru da saúde e do bem-estar”, acreditando que mudaria as pessoas por meio de um programa intitulado Vida biológica, o qual estava apoiado em princípios que teriam chegado a ele por meio de “visões e profecias”.
Com seu “poder messiânico” e prestígio nacional, Kellogg transformou o Sanatório de Battle Creek em uma espécie de igreja-spa-centro holístico e hotel que tinha tratamentos absurdos, como a fototerapia com luz artificial para curar depressão e “banhos contínuos” que poderiam durar semanas e prometiam livrar as pessoas de doenças de pele.
No entanto, o mais absurdo dos tratamentos era contra o “vício solitário”, como Kellogg se referia à masturbação. Ele defendia que a prática causava má digestão, visão prejudicada, doenças cardíacas, epilepsia e perda de memória. Para isso, o médico encorajava técnicas como envolver o pênis em uma gaiola de metal com lâminas para evitar até as ereções involuntárias; costurar o prepúcio sobre a cabeça do pênis, algemar as mãos ou se submeter à circuncisão sem anestésico. Quanto às meninas, ele recomendou a aplicação de ácido carbólico puro no clitóris ou fazer a remoção cirúrgica deles.
Em 1870, obstinado em combater todos esses problemas sexuais e doenças com um novo “padrão alimentar”, ele começou reajustando os pesados cafés da manhã dos cidadãos norte-americanos, que era responsável por causar constipação, má digestão e azia devido ao seu alto teor calórico.
Primeiro, Kellogg desenvolveu a “granula”, um cereal composto por aveia e milho cozidos que, depois de frios, eram moídos até que se transformassem em pedacinhos. O alimento foi ajustado para ser o suficiente para uma alimentação matinal completa e com os melhores nutrientes, além de ser fácil de mastigar, leve e livre de ingredientes que, segundo o médico, “excitavam” e irritavam o organismo, contribuindo para o “despertar do desejo sexual”.
No entanto, o médico nova-iorquino James Jackson já havia patenteado o farelo com o mesmo nome, portanto Kellogg foi forçado, por meio de um processo judicial, a mudar o nome de sua criação para “granola”.
Em meados de 1897, a partir de uma ideia que teve em um sonho e após usar alguns utensílios de cozinha de sua esposa para teste, Kellogg desenvolveu um conjunto de rolos que serviriam para passar a massa de trigo e obter uma textura mais fina e delicada.
Certa noite, em seu laboratório no Sanatório Battle Creek, ele esqueceu no forno uma fornada de trigo, mas, em vez de jogá-la fora, o médico decidiu passá-la pelos rolos e descobriu que a crocância gerava pequenos flocos de trigo. Ele pediu ao seu irmão Will Kellogg que refizesse o processo, só que usando milho no lugar do trigo, e a receita deu mais certo ainda.
Os dois batizaram o produto de corn flakes, patentearam a ideia em 14 de abril de 1895 e criaram a Sanitas Food Company para produzir e comercializá-lo. Contudo, Will, como um empresário muito ambicioso e visionário que pensava só em negócios, sempre quis expandir a produção do cereal, mas John Kellogg só queria que o produto fosse vendido para os hóspedes do Sanatório de Battle Creek.
Até 1902, o empreendimento foi um sucesso absoluto, porém quando Will sugeriu adicionar açúcar nos cereais para comercializá-los melhor, seu irmão não concordou com a mudança, causando a ruptura da parceria. Em 19 de fevereiro de 1906, Will fundou a Battle Creek Toasted Corn Flakes Company, com a mesma receita de John Kellogg, visto que ele não se importava em repassá-la para ninguém. Antes de se tornar Kellogg’s Company em 1922, a empresa foi chamada também de Kellogg’s Toasted Corn Flakes e Kellogg Toasted Corn Flakes Company.
E, apesar do que muitos sites espalham sobre a criação do cereal matinal, John Kellogg não o desenvolveu a fim de ser uma “refeição matinal antimasturbatória” e tampouco o difundiu sob essa premissa em seus anúncios, embora o produto tenha sim sido feito com a intenção de afastar possíveis impulsos sexuais oriundos de uma alimentação exagerada e repleta de gordura animal.