Estilo de vida
04/06/2022 às 11:00•3 min de leitura
Você já se perguntou porque algumas pessoas acreditam cegamente em teorias absurdas — como as mamadeiras em formato fálico, a associação entre 5G e COVID ou mesmo negar que a pandemia está acontecendo? Quem de nós não conviveu com uma mãe ou avó que achava que os livros, filmes ou músicas que consumíamos eram todos "do capeta"?
As origens desse movimento podem ser encontradas nos Estados Unidos dos anos 1980 e 1990 — e foram bastante estimuladas por uma série de livros de ficção de um escritor cristão do país. Trata-se de Frank Peretti, cujas obras mais conhecidas são os dois volumes de Este Mundo Tenebroso, lançados em 1986 e 1989.
Leia também: 6 crenças religiosas que mudaram com o tempo
Frank Peretti, autor dos livros "Este Mundo Tenebroso". (Fonte: Facebook/Frank Peretti)
Este Mundo Tenebroso se passa em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos. A história começa com dois jornalistas, um homem e uma mulher, que descobrem um plano terrível de uma sociedade secreta, ligada à filosofia new age, para afastar os moradores do cristianismo — e corromper suas almas para o mal.
Quando a dupla de jornalistas começa a desmascarar o maquiavélico grupo de vilões, estes respondem armando a prisão do homem, que é acusado assassinato, adultério e de molestar sua própria filha (tudo de uma vez?). Em paralelo, um pastor recebe as mesmas acusações, fazendo com que os dois homens se conheçam e liguem os pontos.
É aí que tudo começa a fazer sentido (no universo do livro, apenas). O que acontece é que a cidadezinha está repleta de demônios que querem dominar todas as almas — e de anjos, que tentam impedir a perdição eterna das almas. A partir daí, começa o que os fundamentalistas evangélicos chamam de "guerra espiritual".
(Fonte: Wikimedia Commons)
As filosofias new age, o ambientalismo e até a meditação seriam armas que os demônios usam para desviar as pessoas do cristianismo — como parte de uma grande guerra pela dominação do mundo e das almas. Há dois lados muito bem separados: bem (cristãos) e mal (quem não é cristão e, portanto, é um demônio).
Leia também: Como os seguidores de Jesus fundaram o Cristianismo?
O segundo livro da série conta uma história diferente, mas com temática muito parecida: uma pessoa bondosa descobre um plano maléfico para conquistar almas, como parte da tal guerra espiritual, enquanto recebe acusações falsas. Todo tipo de modernidade e filosofias diferentes do fundamentalismo evangélico são classificados como armas dos demônios — do mau.
Os livros de Frank Peretti venderam mais de 10 milhões de cópias e inspiraram uma infinidade de outros conteúdos, com até mais sucesso. Livros como Deixados para Trás ou filmes como Deus Não Está Morto, por exemplo, ainda que pareçam meras ficções cristãs, para um público específico, esses conteúdos têm pontos em comum — bastante preocupantes.
Eles dividem a sociedade entre bem e mal, colocando os fundamentalistas evangélicos como a única possiblidade de bem. A partir disso, as histórias seguem uma estrutura de "nós contra eles", como se os evangélicos estivessem sendo perseguidos pelo lado do mal e precisassem combatê-lo a qualquer custo.
É nesse universo que as conspirações começam a fazer sentido: universidades são fábricas de ateus, meditação e outras filosofias são "obras do demônio" e os comunistas malvados querem comer criancinhas. Afinal, os demônios estão contra nós, fundamentalistas evangélicos.
(Fonte: Shutterstock)
Em matéria da revista Vox, três colunistas relembraram o passado em famílias fundamentalistas evangélicas — lendo livros como os de Peretti. Elas reconhecem que, por mais que sejam mal escritos e repletos de furos na história, os livros "prendem o leitor" com várias cenas de ação e momentos de catarse, na luta entre bem e mal.
Elas também reparam que os anjos/bem sempre seguem o viés conservador: homens fortes, viris e brancos. Já o mau é descrito como afeminado e com características de povos como os hindus — demonstrando também machismo e racismo, nas entrelinhas.
Quando a divisão entre bem e mal fica clara, o leitor busca se identificar com os personagens bons. Na medida em que a narrativa da guerra espiritual ganha força — não apenas nos livros, mas também nas "fake news", redes sociais e púlpitos de igrejas — os fundamentalistas podem se sentir parte de um grupo. O grupo do bem — e isso dá sentido às suas vidas.
Depois disso, basta adicionar uma pitada de viés de confirmação — nós somos mais propensos a acreditar em notícias que confirmem nossa visão de mundo — e pronto! Temos pessoas que vão acreditar (e compartilhar) todo tipo de teoria da conspiração.
Leia também: Como o cristianismo transformou curandeiras em bruxas?