Por que a pirataria no Brasil é social e moralmente aceita?

01/10/2022 às 12:004 min de leitura

Se você nunca viu o vídeo Bob’s and Jim’s DVD, então provavelmente não pegou o período de locação de filmes durante o boom da mídia DVD, que aconteceu entre a década de 1980 até meados de 2011, quando começou a declinar no Brasil com o surgimento das plataformas de streaming – apesar de o fim ter surgido um pouco antes nos Estados Unidos, em 2006.

A propaganda vinha colada na mídia de muitos DVDs como uma forma de conscientizar de maneira cômica o público norte-americano sobre os benefícios e malefícios de adquirir um DVD pirata, ou seja, falsificado – muito embora parecesse fazer mais sentido para o público de países emergentes, como o Brasil, que na época comprava a versão pirata por até R$ 10, enquanto os norte-americanos pagavam US$ 3, com a versão original custando entre US$ 15 a US$ 20, conforme indicou o estudo Media Piracy in Emerging Economies, publicado pela Instituição Americana SSRC, em 2011, com dados colhidos em 2008.

(Fonte: Paula Bronstein/Getty Images)(Fonte: Paula Bronstein/Getty Images)

Naquela época, a pesquisa já mostrava uma taxa alta de pirataria no Brasil, sendo que 56% dela era de softwares, 22% de filmes, 48% de música e 91% de jogos de videogame. Todos esses números condiziam com a ação diária da prefeitura nas cidades brasileiras. Segundo uma matéria de 19 de dezembro de 2007 do Estadão, aproximadamente 24 toneladas de produtos ilegais, em sua maioria apreendidos de camelôs (comerciantes ambulantes ilegais), foram triturados pela prefeitura de São Paulo. 

Só naquele ano, produtos falsificados e contrabandeados encheram 91 mil sacos de 100 litros após serem apreendidos, sendo que desde 2005 a administração removeu mais de 2.400 barracas de camelôs das ruas da cidade. Mas como surgiu a pirataria no Brasil?

Uma questão social

(Fonte: Receita Federal/Reprodução)(Fonte: Receita Federal/Reprodução)

Um levantamento feito pela empresa de cibersegurança americana State of the Internet Akamai colocou o Brasil como o quinto país que mais consome conteúdos piratas do mundo, atrás dos EUA, Rússia, Índia e China. Entre janeiro e setembro de 2021, foram contabilizados 4,5 bilhões de streams e downloads ilegais. Para as empresas, o prejuízo foi de R$ 287 bilhões no ano passado. Mas não para por aí.

O Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP) indicou que o país perdeu, em 2020, cerca de R$ 287 bilhões para o mercado ilegal de roupas, perfumes, remédios, plataformas de streaming, TV a cabo e até carros de luxo; impactando 15 setores industriais. Mais de 2,6 bilhões de produtos falsos foram apreendidos em todo o país, dos quais 1,8 milhões vieram de São Paulo, apesar do apogeu da pandemia do coronavírus em 2020, que deveria ter reduzido a circulação das pessoas devido aos lockdowns.

Segundo Edson Vismona, presidente do FNCP, existe uma aceitação dos brasileiros para a compra de produtos piratas. “As pessoas querem comprar com preços mais baixos, e não se questionam sobre o valor ético dessa compra. Por trás de um produto muito barato, tem fraude, contrabando, pirataria. Ou seja, tem algo errado”, disse ele em entrevista à CNN.

A cada dez brasileiros, três têm o hábito de comprar produtos piratas, como entendeu a pesquisa de 2016 pela Federação do Comércio do Rio de Janeiro. Isso porque existe uma aceitação sistêmica, ao contrário de outros tipos de crime, e uma falsa passividade que impede o consumidor de ver os efeitos nocivos de adquirir produtos pirateados.

Portanto, seria necessário conscientizar a sociedade que a pirataria está associada ao tráfico de drogas – que os brasileiros costumam cobrar tanto o combate das autoridades –, furto de dados, como senhas bancárias, e lavagem de dinheiro.

(Fonte: Alexandre Bortoluz/Rádio Caixias/Reprodução)(Fonte: Alexandre Bortoluz/Rádio Caixias/Reprodução)

Para o procurador da República, José Maria de Castro Panoeiro, existe uma dificuldade cultural no discurso existente de minimização do problema, portanto, é preciso esclarecer a população sobre as perdas coletivas envolvidas nesse comportamento inadequado.

O crime atrapalha e muito o crescimento econômico do país e a geração de empregos, inclusive, em sua maioria, para a fatia social das pessoas que costumam consumir esse tipo de produto. Portanto, o barato acaba saindo caro.

“Sem a pirataria, teríamos mais indústrias, mais empregos, mais inovação, mais geração de tecnologias atuais. Você fortaleceria os elos da economia, teria produtos certificados pela Anatel e pelo Inmetro, garantindo a segurança das pessoas. Você teria um mercado saudável, onde reverteria esses recursos vindos das compras desses produtos para o próprio mercado, para o Brasil, gerando então o desenvolvimento”, afirma Vismona.

As pessoas costumam se compadecer com os trabalhadores informais que vendem esses produtos, como se eles fossem os autores dos crimes, quando, na verdade, são tão vítimas do instrumento de consumo quanto os consumidores. Enquanto isso, a prática promove concorrência desleal, reduz a arrecadação do governo, elimina postos de trabalhos legais e incentiva o cliente a uma prática criminosa, ora por engano, ora conscientemente. 

O Instituto Mackenzie, de São Paulo, revelou que a pirataria movimenta anualmente R$ 56 bilhões em todos os setores, custando 2 milhões de postos de trabalho, e deixando de arrecadar R$ 84 bilhões em impostos não coletados.

A gênese

Dom João VI. (Fonte: Wikimedia Commons)Dom João VI. (Fonte: Wikimedia Commons)

Em uma matéria de 2007 publicada pelo jornal Folha de S. Paulo sobre o livro O Jardim de D. João, da jornalista e escritora Rosa Nepomuceno, a pirataria já aparecia como um problema no período Brasil-Colônia, impulsionado pela chegada da família real ao país, que criou e multiplicou os hortos de aclimatação essenciais para o desenvolvimento do tráfico de plantas.

Os portugueses tinham espiões nos dois grandes hortos franceses (atual Guiana Francesa e em Maurício, no oceano Índico), cooptando pesquisadores para trazer informações e sementes de especiarias, resinas, madeira ou plantas medicinais.

“A pirataria sempre correu solta, mas ela se oficializou em 1809, quando D. João VI mandou invadir a atual Guiana Francesa e levou os portugueses e se estabeleceram na região, entre 1810 e 1817, apropriando-se de manuais e técnicas para plantio”, escreveu ela.

(Fonte: GABRIEL BOUYS/AFP/Getty Images)(Fonte: GABRIEL BOUYS/AFP/Getty Images)

Ou seja, em meio a raízes históricas e culturais tão profundas, seria no mínimo injusto culpar somente a sociedade por adquirir produtos piratas, quando o consumismo e capitalismo criam uma divisão, principalmente entre a classe baixa. O sociólogo Pierre Bourdieu teoriza sobre o habitus que o ser humano consome como forma de se inserir na sociedade em meio a todas as variedades de consumo para conseguir se mover pelos diferentes níveis da esfera social.

A linguagem midiática, alavancada pelas redes sociais, passou a ditar e difundir o que é importante, desenvolvendo ainda mais a necessidade das pessoas em se sentirem aceitas por determinados grupos na sociedade, se manter na moda ou saciar o desejo de pertencer ao momento.

É por isso que estamos na era dos produtos falsificados, mais do que nunca, até mesmo quando uma divisão do móvel da estante da casa de tantos brasileiros era entupida de DVDs e CDs piratas.

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