Tirania da felicidade: já se sentiu obrigado a ser feliz o tempo todo?

07/10/2022 às 10:004 min de leitura

Você já se sentiu obrigado a ser feliz o tempo todo? “Olha como a vida é bonita. Olha o privilégio que você tem de estar vivo e com saúde!”, “ah, mas pelo menos você tem um trabalho” ou ainda “você precisa sorrir mais”. Alguma vez ouviu uma dessas frases ou algo do parecido em sua vida?

Seja nas redes sociais, no trabalho, vizinhança, círculo de amigos ou familiar, pode ser que você tenha se deparado com aquela pessoa que sempre vai encontrar uma palavra para anular o motivo de você não estar feliz no dia. Isso te incomoda?

Se você se sente ou já se sentiu pressionado a estar/ser feliz o tempo todo, significa que experimentou o que os estudiosos chamam de tirania da felicidade.

Não fomos programados para a felicidade

(Fonte: Power of Positivity/Reprodução)(Fonte: Power of Positivity/Reprodução)

Ser feliz é um negócio muito lucrativo, parte de um mercado que arrecada trilhões de dólares por ano, que é o caso da indústria do bem-estar, de acordo com um levantamento do Global Wellness Institute. Este mercado, que comercializa felicidade engarrafada em diferentes formas, vende desde ioga, como forma de se concentrar em seu corpo e mente, até beleza, cuidados pessoais e turismo.

Mas a questão é: os seres humanos não foram feitos para serem felizes. Em termos biológicos, fomos projetados para sobreviver e reproduzir como qualquer outra criatura no mundo natural, porém esse estado de contentamento foi desencorajado porque diminuiria nossa guarda contra possíveis ameaças à sobrevivência.

Ao longo do curso evolutivo da humanidade, foi priorizado o desenvolvimento de um grande lobo frontal em nosso cérebro do que uma capacidade natural de ser feliz, deixando claro quais eram as prioridades da natureza ao longo do processo.

(Fonte: Success Magazine/Reprodução)(Fonte: Success Magazine/Reprodução)

Por outro lado, existe uma análise ampla neste campo que argumenta que o fracasso da natureza em eliminar a depressão no processo evolutivo foi porque ela desempenha um papel útil em tempos de adversidade, ajudando o indivíduo deprimido a se desvencilhar das situações arriscadas e sem esperança. Sentir-se mal também pode ter uma função de resolução de problemas em meio a esse cenário.

Em 2020, um estudo publicado no Journal of Economic Behavior & Organization analisou dados de mais de 14 milhões de cidadãos em 40 países pelo mundo com base em perguntas relacionadas a infelicidade sobre saúde mental, bem-estar físico, bem-estar nacional, e interações e sentimentos sociais.

O que se entendeu foi que, nos Estados Unidos, a infelicidade atinge seu pico por volta dos 49 anos. Os idosos são considerados os menos infelizes das pessoas desse grupo etário na faixa dos 40 anos, ressaltando a existência da crise de meia-idade, considerada um fenômeno social.

Meio século de pesquisa feita pelo General Social Survey sobre atitudes e comportamentos dos cidadãos norte-americanos por pelo menos a cada dois anos desde 1972, mostrou que apenas 29% deles se consideraram muito felizes nos últimos 50 anos.

Ninguém consegue ser feliz o tempo todo

(Fonte: The Spark Counselling/Reprodução)(Fonte: The Spark Counselling/Reprodução)

Em entrevista ao The Independent, o professor de psicologia dinamarquês da Universidade Aalborg, Svend Brinkmann, alegou que existe uma problemática muito grande na repressão de pensamentos negativos e na obsessão pela felicidade. Forçar-nos a ser felizes o tempo todo pode despertar um lado sombrio, atrofiando-nos emocionalmente, visto que a felicidade em si nem sempre é a melhor resposta para todas as situações da vida.

“Eu acredito que nossos pensamentos e emoções devem espelhar o mundo. Quando algo ruim acontece, devemos ter pensamentos e sentimentos negativos sobre isso, porque é assim que entendemos o mundo”, disse ele à jornalista Rachel Hosie.

Além disso, Brinkmann argumenta que tentar ser feliz o tempo todo pode acabar desfazendo a capacidade em um indivíduo de lidar com as situações quando algo ruim acontece de maneira muito maximizada.

“Acho que esse é um lado sombrio da positividade. Nossos sentimentos tendem a se tornar mercadorias e isso significa que somos facilmente alienados de nossos sentimentos”, disse ele, que teme que a sociedade chegue a um ponto em que as pessoas deixem de discutir seus problemas porque acham que precisam fingir que tudo está bem o tempo todo.

Com a fundação do campo da psicologia positiva há 25 anos por Martin Seligman, muitos passaram a acusar o método de perpetuar o mito de que uma boa vida tem tudo a ver com ser feliz, quando, na verdade, o próprio fundador definiu o campo como um estudo do funcionamento humano ideal, não necessariamente apenas o estudo da felicidade.

Obcecados pelo bem-estar

(Fonte: The NewStatesman/Reprodução)(Fonte: The NewStatesman/Reprodução)

A tirania da felicidade, como os especialistas chamam, se estabeleceu nos tempos atuais através de uma indústria que oferta cursos, serviços terapêuticos e de coaching para treinamento da força interior, com literatura de autoajuda, palestras motivacionais, técnicas de meditação, aplicativos medidores de bem-estar e aconselhamentos.

O conceito é uma ramificação considerada problemática da bilionária indústria do bem-estar, pois visa a felicidade a qualquer preço. Em matéria à BBC News Brasil, Edgar Cabanas, professor e pesquisador da Universidade Camilo José Cela, em Madrid, explicou que a noção de felicidade estabelece que a vida boa não é uma questão social, cultural e política; mas de escolha individual, responsabilidade pessoal e fatores subjetivos, como atitude e força de vontade. Ou seja, ser feliz só depende de você.

“Por um lado, negligencia o fato de que não podemos alcançar uma vida boa na ausência de boas condições sociais e de vida: precariedade, desigualdade ou incerteza são determinantes para indivíduos serem felizes, mas esta noção de felicidade nega esse fato”, comentou ele, reforçando a problemática desse tipo de ideia sobre felicidade, que acarreta um tipo de culpa pelos infortúnios na vida.

Cabanas ressaltou que a pressão em ser feliz causa uma confusão entre saúde e normalidade na sociedade, de modo que o discurso da positividade reforça que apenas pessoas felizes são indivíduos ajustados e funcionais, enquanto aqueles que não se sentem ou se autodeclaram felizes o suficiente, sofrem de algum tipo de desajuste pessoal, de saúde mental ou física.

Na verdade, o psicólogo afirma que muitas pessoas que se dizem felizes apresentam problemas de saúde mental e desajuste social, muito diferente daquelas que não necessariamente afirmam ser felizes.

É assim que a sociedade, com ajuda da indústria do bem-estar, que envergonha para vender uma felicidade que se tornou viciante, criou um estigma sobre a infelicidade a ponto de ser vivenciada por muitas pessoas como uma derrota.

(Fonte: Thin. Rich. Happy/Reprodução)(Fonte: Thin. Rich. Happy/Reprodução)

Para Anna Lembke, professora de psiquiatria e medicina da Universidade de Stanford, nos EUA, foi criada uma ilusão sobre a vida ser uma grande festa, e que todos devem ser felizes o tempo todo. O resultado dessa cultura foi a criação de uma noção de doença, visto que as pessoas tendem a pensar que algo está errado com quem não está feliz.

“A vida é, principalmente, sobre estar descontente, e momentos de verdadeira felicidade são fugazes, muitas vezes espontâneos”, esclareceu ela à BBC News Brasil.

Rafael Euba, professor sênior em Psiquiatria do King’s College, em Londres, refletiu em um artigo para o The Conversation, que a indústria da felicidade criou suas raízes nos códigos de moralidade cristão, muitos dos quais dizem haver um motivo moral por de trás de qualquer sentimento de infelicidade, como egoísmo e materialismo.

A maioria desses defensores são aqueles que também desaprovam qualquer caminho alternativo para curar esse sentimento, pregando que uma pessoa atinge um estado de equilíbrio da vida através apenas do desapego, contenção do desejo e renúncia.

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