Karoshi: os japoneses realmente morrem de tanto trabalhar?

02/11/2022 às 04:004 min de leitura

Ouvir que todo o brasileiro vive na praia ou achar que todo norte-americano tem tendência à obesidade pelo consumo de fast food – são ideais que compõe um vilão social muito grande: os estereótipos culturais.

Um dos países mais estigmatizado perante o mundo é o Japão, principalmente nos Estados Unidos, onde se concentra a segunda maior comunidade japonesa fora do país, e também onde o preconceito possui raízes profundas.

Uma pesquisa feita pelo STAATUS Index mostrou que entre todos os outros grupos raciais nos EUA, os asiático-americanos são os menos propensos a se sentirem pertencentes ao país ou são aceitos, mesmo que tenham nascido nele. Em números, apenas 29% deles e 33% dos afro-americanos concordam plenamente que sentem que pertencem e são aceitos pela nação.

(Fonte: Wall Street Journal/Reprodução)(Fonte: Wall Street Journal/Reprodução)

Apesar disso, a maioria dos norte-americanos diz desconhecer o sentimento anti-asiático no país, mas reforçam o estereótipo de que os asiáticos tem uma "dificuldade sistemática" em sentir que não pertencem aos EUA. O estudo também mostra que os americanos ainda enxergam os asiático-americanos como "minoria modelo" e "excessivamente inteligentes e trabalhadores".

Foi o estereótipo unido ao racismo, por exemplo, de que os asiáticos estavam roubando o espaço e o trabalho dos nativos por serem considerados mais "eficientes", que fez o então presidente dos EUA, Chester Arthur, assinar a Lei de Exclusão Chinesa de 1882, proibindo a imigração com base na raça e classe no país.

Mais de nove em cada dez americano associam "trabalhar duro" aos japoneses. Mas os japoneses são mesmo obcecados pelo trabalho?

O trabalho digna o homem

(Fonte: Japão em Foco/Reprodução)(Fonte: Japão em Foco/Reprodução)

O trabalho duro como parte da ética de um cidadão japonês pode ser rastreado desde o início da década de 1920, quando o país atravessava um período de rápida industrialização e militarização, o que não demorou muito para emergir no cenário econômico como uma grande potência global.

E isso não diminuiu nem mesmo após as catástrofes da Segunda Guerra Mundial, principalmente tendo que reconstruir o país das cinzas após a queda de Little Boy e Fat Man em Hiroshima e Nagasaki. Além disso, o governo também teve que pagar reparações de guerra aos Aliados ocidentais, o que significava ter que colocar uma enorme porcentagem de sua população em prática, resultando em mais trabalho.

Um complexo militar-industrial robusto e uma cultura de produção extremamente organizada fizeram as empresas japonesas competirem na frente global, e isso foi aproveitado pelo Estado tanto para se reerguer economicamente quanto para incutir na mente do cidadão de que trabalhar para empresas era a verdadeira marca de excelência de um japonês – ainda que isso significasse a exaustão física e mental.

As novas gerações foram criadas ouvindo que seu objetivo era se tornar um empresário que demonstrasse lealdade ao seu trabalho. Essa ideia criou um sistema educacional brutalmente competitivo no Japão.

Morrendo de trabalhar

(Fonte: IAFOR/Reprodução)(Fonte: IAFOR/Reprodução)

Em outubro de 1973, o mundo enfrentou uma crise petrolífera desencadeada pelos membros da Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo, que proclamaram um embargo petrolífero direcionado às nações que eram vistas como apoiadores de Israel durante a Guerra do Yom Kippur.

Uma vez que o Japão importava 90% de seu petróleo do Oriente Médio, a economia sofreu uma derrocada imensa, a mais grave desde os desdobramentos que levaram à Segunda Guerra Mundial, quando o governo tinha os Estados Unidos como o maior fornecedor da commodity, sobretudo porque aconteceu bem na época da situação inflacionária após o Choque Nixon de 1971.

A maneira que os japoneses encontraram de se recuperar da crise foi mudando sua estrutura industrial, impactando diretamente as políticas de trabalho, ou seja, fazendo muitas pessoas terem que trabalhar de maneira exaustiva – o que levou muitos à morte.

(Fonte: Sora News 24/Reprodução)(Fonte: Sora News 24/Reprodução)

Foi em meio a esse cenário caótico e desesperador que o Japão cunhou a palavra karoshi, que literalmente significa "morte por excesso de trabalho". Essa era a realidade de muitos trabalhadores no Japão de 1973 que, geralmente, morriam por insuficiência cardíaca, derrame, ou suicídio, por não aguentarem as jornadas de 60 ou até 70 horas semanais.

Apesar de a economia japonesa ter se reerguido após a crise, esse padrão laboral apenas expandiu, sobretudo em função do número de trabalhadores irregulares no Japão, que aumentou de 10% em 1990 para 40%.

Quando o sociólogo Junko Kitanaka, da Universidade de Keio, apresentou seu trabalho acadêmico na Europa e na América do Norte sobre o karoshi japonês, trazendo a público o fenômeno sociocultural do Japão, ele revelou que os estrangeiros não entenderam a mentalidade das pessoas por trás desse comportamento.

(Fonte: Japan Times/Reprodução)(Fonte: Japan Times/Reprodução)

Décadas depois, o karoshi já não se tornou uma ideia tão estranha assim para o mundo, principalmente com a maneira como a pandemia desencadeou preocupações generalizadas sobre o custo físico e psicológico do estresse prolongado, privação de sono e isolamento social.

Em junho de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho publicaram um estudo mostrando que 745 mil pessoas morreram em 2016 de acidente vascular cerebral e doença cardíaca isquêmica como resultado direto de terem trabalhado pelo menos 55 horas por semana, indicando que o karoshi, ainda que de maneira indireta, se tornou um problema de saúde mundial. Uma verdadeira pandemia.

O Japão de hoje

(Fonte: The Povertist/Reprodução)(Fonte: The Povertist/Reprodução)

Na década de 1980, os funcionários japoneses de grandes empresas trabalhavam em média 46 horas semanais, sendo 5 dias por semana e dois domingos extras por mês. Isso significava que por ano as pessoas trabalhavam 2.097 horas, o que era muito maior em comparação com outros países desenvolvidos, como na França, onde o empregado médio trabalhava 1.702 horas anuais.

Depois que o karoshi se tornou público e o país passou a ser duramente criticado na frente global, os sindicatos se sentiram ainda mais validados para exigirem mudanças, tendo a redução das horas como objetivo principal. Em 1995, o empregado médio japonês já trabalhava 1.884 horas por ano, e em 2009, a média caiu para 1.714.

(Fonte: Christian Science Monitor/Reprodução)(Fonte: Christian Science Monitor/Reprodução)

A pesquisa de 2020 da OCDE mostrou que a média anual de horas trabalhadas no Japão foi de 1.644, incluindo o trabalho regular em tempo integral, bem como as horas extras remuneradas e não remuneradas em todos os cargos. Isso colocou o país na posição 14º dos 37 países que mais trabalham no mundo, abaixo de nações como os Estados Unidos, que tiveram 1.779 horas totais.

Ainda assim, pelo menos uma vez por ano, manchetes de karoshi ganham a imprensa japonesa. Isso ainda acontece porque certos grupos de funcionários regulares de grandes corporações são mais propensos a fazerem horas extras devido a uma mistura de práticas culturais e expectativa social, que colocam muita pressão nos empregados para que doem tudo de si – incluindo a própria vida.

NOSSOS SITES

  • TecMundo
  • TecMundo
  • TecMundo
  • TecMundo
  • Logo Mega Curioso
  • Logo Baixaki
  • Logo Click Jogos
  • Logo TecMundo

Pesquisas anteriores: