Estilo de vida
15/02/2023 às 12:00•3 min de leitura
Não sei você, caro leitor, mas eu comecei a receber muitos vídeos de gatos selvagens — ou melhor, felídeos silvestres — no TikTok. São espécies diferentes do gato doméstico que está conosco há milhares de anos, mas que são tratados da mesma maneira, como bichinhos de estimação, pelas pessoas nos vídeos.
Pensando nisso, será que é saudável tratar essas espécies silvestres como animais de estimação? Isso é permitido por lei?
Para tirar a limpo, nós conversamos com uma especialista. Dra. Valéria Teixeira (CRMV 3925/PR) é professora na PUC-PR, sócia-proprietária da clínica Vida Livre e presidente da Comissão de Animais Selvagens do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Paraná.
A veterinária explica que os animais domésticos, como gatos e cachorros, passaram por um processo evolutivo que demorou milhares de anos e incontáveis gerações. Assim, os bichos realmente se adaptaram, comportamental e fisicamente, para conviver conosco. "É uma situação bem diferente", conta a Dra. Valéria.
O gato doméstico é da espécie Felis catus. Já o caracal ou o serval — que vemos sendo tratados como pets no TikTok — são outras. Mesmo que façam parte da família Felidae, são de linhagens diferentes que não passaram por todo esse processo de domesticação.
Isso quer dizer que é perigoso ter um caracal ou serval em casa? Não necessariamente.
Esses animais são amansados, acostumados a conviver com humanos desde muito jovens — existem até leões ou tigres assim. Eles reconhecem os seres humanos como parentes, então dificilmente vão nos atacar por vontade própria.
Por outro lado, esse é um processo que ocorreu apenas para aquele indivíduo, não para toda essa espécie. Então, ele ainda é um animal selvagem, que não nos entende como um gatinho ou cachorro. Por isso, esse animal pode esmagar, arranhar ou causar outras lesões na pessoa, uma vez que não ela não tem tanto controle sobre ele.
O serval é outra espécie de felídeo selvagem (Fonte: Wikimedia Commons)
Falando em instintos, há outra questão importante: cada espécie de animal silvestre tem seu ciclo circadiano. E forçar o bicho a conviver com humanos bagunça toda a rotina dele.
Muitos felídeos são noturnos ou gostam de viver sozinhos em grandes áreas, por exemplo. Eles também têm grande sensibilidade em relação aos sons, os cheiros ou a luz — e seres humanos costumam viver em locais muito barulhentos e iluminados. Além disso, esses bichos se desenvolveram para caçar e comer presas inteiras — não para receber carne prontinha em uma tigela, sem esforço.
Os gatos e cachorros domésticos já evoluíram para se adaptar a isso, mas espécies silvestres não. Então, para Valéria, a relação acaba se tornando artificial: os animais suportam (e até tem recompensas, como comida), mas porque foram obrigados a isso, indo contra sua natureza.
Valéria é categórica ao dizer que os animais silvestres adotados indevidamente "estão mortos para a natureza". Afinal, como conviveram com humanos desde filhotes, eles não podem voltar para seus habitats. Até porque não aprenderam a caçar, brigar por território e outras questões essenciais. E eles também não vão se reproduzir, o que é a prioridade de todo animal.
"A única função do ser vivo é perpetuar sua espécie. E esse animal não consegue mais fazer isso. Ele está sendo retirado de um pool genético, de toda uma estrutura da qual essa espécie e a natureza como um todo dependem", explica a veterinária.
A jaguatirica é um felídeo silvestre da América do Sul (Fonte: Wikimedia Commons)
Mas o que diz a lei brasileira sobre isso? Segundo Valéria, o assunto é complexo: cada estado tem sua própria regulação e uma lista de animais permitidos, mas uma regra nacional para isso ainda está em discussão. Além disso, existem leis contra o tráfico de animais, então você não pode apenas pegar um felídeo selvagem no mato e levar para casa porque achou fofinho.
Dá vontade, mas você não pode.
Quanto um animal é resgatado, o ideal é devolvê-lo à natureza. Também é possível fazer um criatório para pesquisa ou conservação — há muitos bichinhos que vivem em zoológicos ou santuários, não? Mas aí que está: quem vai fazer isso é um instituto, com especialistas, e não um cidadão comum que quer ter um pet diferentão.
Sendo assim, se houver chance desse animal voltar para a natureza, é melhor que ele tenha o mínimo possível de contato com os humanos — e permaneça com seus instintos. Só se ele tiver de ficar "para sempre" conosco, é melhor que esteja amansado.
Nesses casos, o tratador, o veterinário e outros profissionais poderão cuidar do animal sem ter problemas. Por outro lado, como Valéria explicou, esse animal "estará morto para a natureza" e jamais voltará ao seu habitat. Por isso, os veterinários e biólogos vão buscar compensar a natureza de outra forma — fazendo pesquisa ou reprodução em cativeiro, por exemplo.
"É um assunto complexo. Estamos numa linha tênue", comenta Valéria. De qualquer maneira, cuidar de um animal resgatado ou que nasceu em cativeiro por outros motivos é diferente de tirar o bicho da natureza apenas porque você quer um pet exclusivo.
Em resumo: animal silvestre não é pet. Não siga essa trend do TikTok.