Artes/cultura
17/07/2023 às 13:00•6 min de leitura
“Nenhum tipo de escolha te exime da indústria da moda”, escreveu Lauren Weisberger em seu notório romance O Diabo Veste Prada — e ela não estava errada. Optar por uma peça adquirida em um comércio local a de uma arara virtual em uma fast fashion não vai impedir que você seja contaminado, de alguma forma, por essa cadeia.
Tudo o que é processado, do algodão barato ao tecido mais tecnológico, está associado aos problemas que a indústria têxtil gera. Em escala global, o setor produz de 100 bilhões a 150 bilhões de peças individuais por ano, sendo que cerca de 80 bilhões delas são compradas. A geração Z é considerada a mais consumista neste ramo, comprometendo 36% de seus gastos mensais, em média, com roupas. Um levantamento do centro de pesquisa Statista estimou que o consumo anual de vestuário em 2022 movimentou US$ 2,4 trilhões na economia mundial.
Calma, ninguém está aqui para fechar os olhos para o problema que essas quantidades massivas de zeros causam ao planeta e à nossa saúde — muito pelo contrário. O sétimo maior setor da economia também é o segundo mais poluente do mundo, responsável por 10% das emissões globais de carbono e por sujar o meio ambiente com a utilização de tinturas de baixa qualidade e produtos insolúveis à base de metais pesados.
Pronto, era aqui que queríamos chegar. Apesar de existir um conhecimento bem popularizado sobre os malefícios da indústria da moda, há uma falha imensa em revelar os impactos diretos que ela causa em nossa saúde a partir do momento em que vestimos uma roupa. Coceiras, erupções cutâneas e alergias são constantemente ligadas à má qualidade do tecido ou poeira acumulada nese material. O que poucos sabem, no entanto, é que esses sintomas podem estar associados às tinturas usadas durante o processo de fabricação de uma peça.
O motivo pelo qual você deve fazer do hábito de separar roupas brancas das coloridas mais do que um exercício de valorização do seu dinheiro é porque as roupas coloridas podem estar te deixando doente.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Objetos brilhantes deslumbram os humanos desde o início dos tempos. Na pré-história, por exemplo, o homem já polia suas ferramentas feitas de ossos para obter uma cor brilhante, também fazendo uso de matérias que iam do marfim a madrepérola para fazer ornamentos tão requintados quanto joias. Povos modernos, como os yolngu, isolados no norte da Austrália, se destacaram entre os estudiosos por sua arte que usa muito brilho, que consideravam a melhor maneira de manifestação do poder espiritual.
Entre 3500 e 3100 a.C., os antigos povos egípcios e sumérios começaram a utilizar pigmentos naturais, como os extraídos da malaquita e do lápis-lazúli, misturados com água ou óleo para criar tintas com cores vibrantes e brilhantes. Foi também como expressão artística, proteção e reconhecimento de identidade étnica que eles começaram a tingir suas vestes.
A evidência mais antiga dessa prática remonta a 5.000 a.C. e aconteceu tanto no Egito quanto na Índia, com técnicas iniciais de tingimento de roupas que envolviam o uso de corantes naturais extraídos de fontes vegetais, animais e minerais. As plantas índigo e açafrão, por exemplo, foram usadas na produção de uma variedade de cores. Na caverna de Blombos, no Cabo Ocidental da África do Sul, foram encontrados resquícios de tinta feita de argila vermelha e ocre, misturada com gordura de medula em pedaços, datados de 100 mil anos atrás.
Tudo poderia ter continuado assim se a necessidade intrínseca ao ser humano em buscar pelo progresso não tornasse essas técnicas insuficientes. Ainda no Antigo Egito, onde surgiu a indústria têxtil, nasceu não apenas uma variedade maior de cores, mas também maneiras de fixá-las por mais tempo nos tecidos por meio do uso de mordentes, fermentação e até pó mineral.
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O problema do progresso é que, na maioria das vezes, ele está atrelado a condições "estranhas". Aristóteles já discutia que a ambição pode ser uma virtude quando em equilíbrio com outras virtudes, mas que se torna prejudicial quando excessiva e não alinhada a um bem comum.
Afinal, os químicos do período vitoriano ainda usavam corantes naturais quando Sir William Henry Perkin acidentalmente sintetizou a mauveína enquanto buscava uma maneira de produzir quinino, um medicamento para tratar malária, dando origem ao primeiro corante sintético da história. É verdade que eles buscaram maneiras duradouras de manter a coloração das roupas utilizando ácido sulfúrico, que causou infecções e morte em grande escala. Mas era 1856, os momentos finais da Revolução Industrial, um período de transformação econômica e social importantes, que também significou o início da deterioração acelerada do meio ambiente.
Naquela época, muitos acreditavam que era necessário abrir mão de algumas coisas (a saúde), em detrimento de outras (o progresso). Será que Frances Appleton, esposa do escritor Henry Longfellow, também pensava assim quando morreu queimada apenas por deixar um fósforo recém-apagado cair em seu vestido feito com altas doses de produto inflamável?
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Erupções cutâneas, infecções pulmonares, náuseas, cólicas, diarreias, dores de cabeça constante e asfixia foram apenas alguns dos sintomas causados pelo famoso "Verde Scheele". A pigmentação foi criada pelo químico sueco Carl Scheele ao misturar potássio e arsênico branco em uma solução de vitríolo de cobre. A cor se tornou uma sensação porque o verde era o mais difícil de ser reproduzido em roupas.
Lá no século XVIII, as pessoas só precisavam se preocupar com um ou dois componentes químicos, mas aqui no século XXI, o processo de fabricação de roupas utiliza mais de 8 mil produtos químicos em sua composição, sendo que a maioria deles é prejudicial à saúde.
Atualmente, a indústria da moda utiliza cerca de 93 bilhões de metros cúbicos de água por ano, o suficiente para atender às necessidades básicas de mais de 5 milhões de pessoas. Esse número tende a dobrar até 2030, segundo os dados da Common Objective, uma rede de negócios com foco em melhorar a experiência de quem comercializa produtos de moda. Em sua maioria, esse montante é empregado durante a fase de tingimento, que exige até 200 toneladas de água para cada tonelada de têxteis.
Uma vez que a maioria dos corantes são solúveis em água, isso facilita que sejam absorvidos pela nossa pele. Um exemplo disso são os azocorantes, que representam a maioria dos corantes sintéticos da indústria, presentes em cerca de 60% a 70% dos processos têxteis. E, impressionantemente, sua popularidade é tão grande quanto a marca que deixa em nossos corpos.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
A pesquisa “Toxicidade comparativa de azocorantes para dois organismos infaunais”, publicada no National Library of Medicine, ressaltou que os azocorantes se tornam componentes altamente cancerígenos quando decompostos e metabolizados. A sua exposição a longo prazo também está associada a um maior risco de problemas reprodutivos, de desenvolvimento hormonal, condições respiratórias e reações alérgicas, porque os produtos químicos liberados durante o processo de tingimento não se dissipam do tecido.
O Center for Environmental Health (CEH), uma organização sem fins lucrativos que trabalha para proteger crianças e famílias de produtos químicos nocivos, descobriu recentemente o BPA, um produto químico destruidor de hormônios presente no poliéster de roupas fabricadas por empresas esportivas. Quando a pessoa transpira, causando maior dilatação dos seus poros, facilita a absorção do componente pelo seu organismo, podendo sofrer problemas hormonais a longo prazo.
Quem busca por roupas à prova de manchas ou com acabamentos impermeabilizantes está mais do que investindo em conforto e durabilidade, mas também colocando em contato com a pele o que é chamado “corante disperso”, usado em malhas de poliéster e também em panelas antiaderentes, capaz de causar de alergias a crises graves de asma.
Na década de 1970, o Congresso determinou que pijamas infantis fossem resistentes ao fogo para proteger crianças de queimaduras em caso de incêndio. Demorou sete anos para que cientistas descobrissem que o produto químico chamado tris, usado em larga escala no processo de fabricação, causava mutação e alteração genética nas crianças ao ser absorvido pela pele ou aspirado pela boca durante o sono.
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Uma vez que é difícil obter resiliência quando se interpreta um papel muito negativo, a indústria da moda se apoiou no ecocapitalismo para tentar dizer ao mundo que, apesar de destruir o meio ambiente e afetar a saúde humana, ela estava tentando ser mais consciente. O problema é que não havia nenhum comprometimento ecológico nesse posicionamento. Em um mundo tecnológico e, sobretudo, mais conscientizado, as pessoas exigem cada vez mais clareza dos impactos do homem no planeta. Portanto, é economicamente interessante que as indústrias se posicionem de acordo.
Os “corantes sustentáveis”, feitos a partir de produtos naturais, como resina de árvore ou castanhas, foram a resposta da indústria da moda. Mas essas substâncias não só possuem as já conhecidas limitações de eficiência, durabilidade e disponibilidade de recursos, como também enfrentam desafios em sua regulamentação e alto custo de produção. Em um setor dominado pela confecção e descarte rápidos, esse modelo simplesmente não tem espaço.
Por outro lado, também vale ressaltar que nem mesmo os corantes sustentáveis estão livres de apresentar um grande nível de toxicidade. Apesar de serem obtidos de fontes naturais, alguns contêm compostos químicos que podem desencadear reações cutâneas. Fora que nem todos os corantes naturais são veganos, como o corante vermelho feito a partir do esmagamento de besouros cochonilha.
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Por isso é difícil para órgãos como o CEH mapear o quanto e em qual grau as roupas estão afetando a nossa saúde, porque simplesmente não tem como saber o que a moda está usando em seus processos de fabricação, apesar de em vários países existirem leis e regulamentos para controlar a presença de substâncias nocivas em produtos têxteis.
Nos Estados Unidos, uma delas é o chamado Consumer Product Safety Improvement Act (CPSIA), que estabelece limites para alguns tipos de produtos químicos, como chumbo e ftalatos, em peças de vestuário, principalmente naquelas destinadas ao público infantil. Já no Brasil, o principal regulamento é a Resolução REACH, emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em 2011 com base nas diretrizes do Regulamento REACH da União Europeia, que visa proteger a saúde humana e o meio ambiente restringindo e controlando as substâncias químicas perigosas nos produtos têxteis.
Se você está se perguntando por que nada disso funciona da maneira como deveria ser, a resposta é simples: regulamentações insuficientes, conflito de interesses econômicos, complexidade da cadeia de suprimentos, falta de transparência e conscientização, e custo.
Mas se ainda resta alguma dúvida, podemos completar com o pensamento do sociólogo alemão Theodor Adorno: “o capitalismo é um sistema totalitário”. Ou seja, ele não se limita apenas à economia, mas exerce uma influência profunda em todos os aspectos sociais. Dessa maneira, no final das contas, sendo você um participante ativo ou não, realmente nada o exime da indústria da moda — ou de qualquer outra.