Kodokushi e Godoksa: as mortes solitárias no Japão e na Coreia do Sul

28/06/2024 às 18:005 min de leituraAtualizado em 28/06/2024 às 18:00

Deve chegar a cerca de 1,6 bilhão o número de pessoas vivendo acima dos 65 anos ou mais até 2050, de acordo com a prospecção feita pela Organização das Nações Unidas (ONU), que encara esse fenômeno de envelhecimento global como um sucesso coletivo extraordinário na melhoria das condições de vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. Isso é um testemunho do progresso que a humanidade fez na ciência, tecnologia, medicina e muitos outros empreendimentos para assegurar a qualidade de vida e o acesso a ela.

Apesar de essas recompensas, há também os inegáveis desafios econômicos no que diz respeito a como assegurar uma vida confortável para esse grupo de pessoas enquanto Estados precisam encontrar maneiras de driblar as consequências de ter uma sociedade em rápido envelhecimento, encarando o declínio na produtividade e das relações econômicas na política externa, a perda do seu poder inovador; diminuição do pagamento de impostos; contração na oferta de trabalhadores qualificados nas principais áreas da indústria; e o declínio no emprego de funções sob demanda, causando um grande impacto negativo na competitividade internacional. A Coreia do Sul e o Japão enfrentam esses problemas há anos.

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Japão lidera o ranking como uma das populações que envelhecem mais rápido do mundo. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

Desde 2015 que a Coreia se depara com uma queda nos índices de natalidade, sendo que em 2020, pela primeira vez, foram registrados mais mortes do que nascimentos, o que indica que o número de habitantes encolheu. Em 2022, o país quebrou seu próprio recorde de menor taxa de fertilidade do mundo. A taxa de fecundidade caiu para 0,81 em 2021, e deve despencar para 0,68 em 2024, de acordo com o Statistics Korea. Para manter uma população estável, é preciso de uma taxa de 2,1 – qualquer número acima disso indica crescimento populacional.

O Japão lidera o ranking como uma das populações que envelhecem mais rápido do mundo. Em 2023, o Ministério da Saúde apontou que a taxa de natalidade do país atingiu um novo recorde de 1,2, que significa 0,06 pontos abaixo do que em 2022. O número de nascimentos sofreu uma queda de 43.482 em relação a 2022, enquanto número de divórcios subiu para 183.808.

Em meio a tudo isso, as sociedades envelhecidas enfrentam os fenômenos de mortes solitárias, denominadas Kodokushi no Japão e Godoksa na Coreia do Sul.

Morrendo sozinho no Japão

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Em 2020 cerca de 6.7 milhões de lares japoneses eram compostos por idosos morando sozinho. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

Em um relatório disponibilizado pela agência de notícias Kyodo a partir de dados da Agência Nacional de Polícia do Japão, cerca de 68 mil idosos, com 65 anos ou mais, morrem sozinhos em suas casas a cada ano no Japão. O número alarmante de Kodokushi revela não só uma solidão profunda dessa parcela significativa da sociedade, como também a negligência do Estado em fornecer amparo ao longo de todo o espectro de formulação de políticas.

Entre janeiro e março de 2024, um total de 21.716 indivíduos em todo o país morreram sozinhos em suas casas e só foram encontrados após dias ou até semanas pelas autoridades. Quase 80% dessas pessoas tinham 65 anos ou mais.

O Statista revelou que em 2020 cerca de 6.7 milhões de lares japoneses eram compostos por idosos morando sozinhos. Em parte, isso se deve ao enfraquecimento das estruturas familiares no país – fruto da reestrutura do status quo da sociedade, algo que o governo luta para contornar –, levando muitos idosos a não viverem com seus filhos ou membros da família. Os indivíduos são impedidos de buscarem ajuda devido aos ideais milenares que enfatizam a autossuficiência e desprezam a ideia de ser um fardo na vida dos outros, o que contribui para o aumento da solidão e o isolamento, podendo ser severo na paisagem extremamente urbanizada do Japão, apesar da proximidade física entre vizinhos.

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Deve chegar a 1,6 bilhão o número de pessoas vivendo acima dos 65 anos ou mais até 2050. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

Os fatores econômicos cimentam todo o fenômeno do Kodokushi japonês e são o que realmente revelam o quanto essa população idosa é desprezada por um governo cujos esforços estão centrados em espremer a mão de obra da sociedade jovem, enquanto tenta "concertar" em suas mentes o fato de que precisam namorar, casar e procriar para que as bases políticas do país não colapsem.

O Relatório Anual sobre uma Sociedade em Envelhecimento encontrou uma vontade muita alta dos idosos japoneses em trabalhar, com 40% deles a favor de continuarem a ganhar uma renda, porque é impossível viver dignamente no país com pensões cada vez mais baixas, podendo chegar a US$ 450, e poupanças inadequadas. 

Atualmente, um em cada quatro idosos (aproximadamente 9 milhões) realiza trabalho informal em tempo parcial, como faxineiros, seguranças, entregadores ou atendentes. Mas isso também é um reflexo do endosso do governo a política do "trabalhar para sempre" do Japão como um esforço para enfrentar a escassez de mão de obra e fazer também os idosos pagarem suas contas em vez de o sistema nacional.

Morrendo sozinho na Coreia do Sul

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Na Coreia do Sul, é mais comum homens idosos morrerem sozinhos do que mulheres. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

O Godoksa na Coreia do Sul ganhou atenção nos últimos 10 anos devido ao aumento vertiginoso de mortes solitárias e dos seus impactos na sociedade, que se acentuaram desde a pandemia de Covid-19. Só em 2021, o Ministério da Saúde e Previdência registrou 3.378 mortes solitárias, das quais mais de 85% eram indivíduos de meia idade do sexo masculino. Todos levaram uma média de 3 semanas para que fossem descobertos.

Muito diferente do Japão, em que as mulheres costumam morrer sozinhas e na pobreza mais do que os homens devido às políticas de previdência nacional estabelecidas no pós-guerra de 1945 para incentivar o trabalho e focar na reconstrução familiar, o Ministério da Saúde e Bem-Estar da Coreia mostrou que o número de homens que morreram sozinhos foi mais de quatro vezes maior do que o de mulheres. Cerca de 500 mulheres morreram sozinhas a cada ano entre 2018 e 2021, em relação a mais de 2 mil homens, sendo que esse número cresceu para 2.817 em 2021.

Os sul-coreanos enfrentam alguns dos mesmos problemas que o Japão, como crise demográfica do país, lacunas no bem-estar social, isolamento social e a pobreza dessa população idosa. Os homens estão entre a maioria que morre sozinha entre os 65 anos ou mais porque o subemprego é visto como uma desonra, bem como é potencializado pela cultura do consumo de álcool, predominante entre os homens, apesar de atingir a sociedade inteira.

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A Coreia do Sul é o 14ª país com maior índice de divorciados do mundo. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

Esses homens colhem os frutos de uma vida bebendo, adquirindo vários tipos de doenças, como cirrose hepática, e acabam sozinhos porque nesses contextos são absorvidos hábitos que contribuem para o divórcio. Há uma estrutura social antiga de que as mulheres estão abaixo dos homens no país. No ranking de divórcios mundiais, a Coreia ocupa a 14ª posição ente os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Segundo Song In-joo, pesquisadora da Seoul Welfare Foundation, especializada em isolamento social e mortes solitárias, a aposentadoria precoce ou o divórcio tendem a ter um impacto mais profundo nos homens porque a ideia de perder sua posição na sociedade e em um lar impulsionam grandes sentimentos de sofrimento e solidão, delineados por fracasso e falta de autossuficiência.

Acima disso, há também a dependência dos homens que não estão acostumados a fazer tarefas domésticas, tendo maiores riscos de acabar negligenciando a si mesmos, caracterizando uma condição em que um indivíduo não consegue atender as suas necessidades físicas e psicológicas essenciais, podendo levar a doenças crônicas, em casos graves.

O que esses países estão fazendo?

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Japão aposta em alternativas tecnológicas e políticas governamentais para evitar as mortes solitárias. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

Em 2021, o governo sul-coreano criou a Lei de Prevenção e Gestão de Mortes Solitárias para tentar deter o problema por meio do fortalecimento e a cooperação com as autoridades locais na detecção de sinais de alerta entre homens na faixa dos 50 e 60 anos.

A pesquisadora Song In-joo, no entanto, aponta que essas pessoas em estado de vulnerabilidade podem não querer atenção dos serviços sociais ou da comunidade local, recusando receber ajuda mesmo quando os assistentes sociais batem a sua porta. Para ela, o governo precisa chegar ao fundo da questão e fornecer um tipo de apoio preventivo, como programas de geração de empregos para ajudar esses homens a escapar do ciclo vicioso da pobreza e do isolamento social.

O Japão, por sua vez, apostou em várias soluções tecnológicas, incluindo dispositivos domésticos inteligentes, monitores de saúde vestíveis e robôs sociais desenvolvidos para monitorar a saúde e o bem-estar de indivíduos que vivem sozinhos. O governo, no entanto, não discutiu sobre o quão acessível esse apoio tecnológico será para essa camada extremamente empobrecida.

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A Coreia do Sul ainda faz pouco para combater as mortes solitárias. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

Enquanto isso, políticas governamentais estão sendo projetadas para abordar os sintomas e as causas subjacentes do Kodokushi, incluindo melhores programas de bem-estar social, melhor acesso à saúde e iniciativas para combater o isolamento social. A rede de apoio regular inclui também o treinamento de apoiadores especializados em cada área para ajudar as pessoas afetadas pela solidão, ao passo que incentiva o desenvolvimento de uma base de dados nacional que cataloga estratégias eficazes para enfrentar o fenômeno.

Esse ano, o Asahi Shibun, um dos cinco maiores jornais japoneses, disse que o governo colocou em vigor uma lei que enquadra solidão e o isolamento como questões sociais, obrigando governos locais a formarem conselhos regionais com grupos de apoio para indivíduos que vivem em solidão.

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