Estilo de vida
16/04/2024 às 20:00•4 min de leituraAtualizado em 16/04/2024 às 20:00
Para entender por que o sistema alimentar mundial está falido, é necessário saber do que ele se trata. Quando falamos em sistema alimentar mundial, também conhecido como sistema agroalimentar, nos referimos a uma infraestrutura que engloba todo um departamento logístico de consumo e atividades do consumo de alimentos em escala global, desde instituições que fornecem os meios até atores diretos e indiretos, como agricultores, governos, organizações, ONGs e empresas agroalimentares.
Esse sistema interconectado é essencialmente político, não só por tocar em assuntos que vão desde segurança alimentar, sustentabilidade ambiental, equidade social e mudanças climáticas; mas por ser um reflexo íntimo do desenvolvimento e expansão da civilização humana e complexidade das sociedades. Em linhas gerais, a urbanização e globalização.
Apesar de as bases do sistema alimentar mundial como o conhecemos ter ganhado seus primeiros contornos a partir da Revolução Industrial do século XX, em quesito de linha de produção e escalonamento de processos, é possível dizer que seu conceito surgiu entre 10 mil a 5 mil anos atrás. O "Crescente Fértil", por exemplo, é sempre citado como um dos primeiros locais onde uma forma sedentária da agricultura se desenvolveu, por meio do cultivo de plantas, como trigo, cevada e leguminosas, fora a domesticação de animais para a produção de comida. Isso deu origem a excedentes de alimentos que esses povos começaram a enxergar como uma oportunidade de trocar ou comercializar com outras comunidades.
Ironicamente, entender quais foram as causas que fizeram o sistema alimentar mundial falir é descobrir que foram os mesmos motivos pelos quais ele se desenvolveu.
Em 2023, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) emitiu um relatório, o primeiro do gênero, sobre os denominados “custos ocultos” quantificados globalmente do setor agroalimentar. Foi descoberto que, em 2020, esses custos somaram US$ 12,7 trilhões com base na paridade do poder de compra, cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) global.
Ao analisar os custos ocultos para a saúde, sociedade e o meio ambiente, incorporados no atual sistema alimentar, as descobertas iniciais da FAO mostraram que o maior impacto em termos monetários é na saúde, em que 73% de todos os custos ocultos contabilizados estavam associados a dietas que levaram à obesidade ou a doenças não transmissíveis, como a diabete. O próximo maior impacto foi no ambiente, representando mais de 20% dos custos ocultos quantificados.
Financeiramente, esses custos ocultos globais se tratam de uma gama de despesas que não são imediatamente aparentes ou quantificáveis, mas que exercem grande impacto globalmente. Esses custos também incluem coisas, como efeitos ambientais negativos de certas práticas industriais, bem como podem estar associados à exploração de mão de obra em países em desenvolvimento.
Uma fábrica, por exemplo, que descarta produtos químicos em um rio, pode economizar dinheiro a curto prazo ao evitar o tratamento adequado de resíduos. No entanto, essa conta vai chegar e ser revertida em custos ocultos globais, que podem incluir a manipulação do ecossistema do rio, impactando a pesca local, a saúde das comunidades ribeirinhas e até mesmo custos associados à perda de biodiversidade.
Inclusive, os custos ocultos dos sistemas alimentares acabam afetando muito países subdesenvolvidos. Neles, quase metade dos custos estão relacionados à pobreza e podem, parcialmente, ser causados pelo fato de os agricultores não conseguirem produzir alimentos suficientes ou por não receberem um preço justo pelos seus produtos.
Uma vez que o sistema se tornou amplamente dominado por corporações multinacionais, a industrialização alterou como produzimos alimentos, abandonando as economias circulares do passado, centradas na produção e reciclagem local, por um sistema unidirecional de fluxo contínuo para atender todo o globo. Com isso, os produtos que consumimos foram propositalmente desconectados de suas origens, causando pobreza e fome extremas em alguns países de baixo rendimento.
Enquanto isso, nos países subdesenvolvidos, os pequenos agricultores precisam lidar com esquemas e táticas escusas, como o aumento de preços, o deslocamento da terra e o controle de sementes e patentes por grandes corporações. Além disso, o grande poder de mercado dessas gigantes permite que influenciem em leis que as beneficiem, tirando os agricultores ainda mais do páreo.
O cacau cultivado em países pobres, como o Gana e a Costa do Marfim, onde os agricultores recebem uma ninharia pelas suas colheitas, é consumido em exagero em países de alta renda, principalmente na Europa. Se essas pessoas ingerissem menos chocolate, mas pagassem mais por um produto financeiramente justo e de maior qualidade, poderiam ajudar a reduzir os impactos na saúde na Europa e também direcionaria mais dinheiro para os agricultores da África Ocidental. No entanto, essa não é a ideia da alavanca capitalista da indústria alimentar.
O Japão possui uma parcela menor dos custos ocultos com relação à saúde nutricional dos seus habitantes, apesar de ser um país de rendimento elevado, porque os japoneses comem mais peixe e sua comida é cara, levando-os a dietas mais saudáveis. É preciso também considerar que existe uma cultura e priorização da ruralidade que constitui a identidade japonesa milenar.
A FAO estimou que os custos ocultos dos alimentos em países de baixo rendimento representam 27% do PIB, em comparação com apenas 8% em países de rendimento elevado. É por isso que, em um comunicado à imprensa, o diretor-geral da FAO, Qu Dongyu, disse que, diante dos crescentes desafios globais, da disponibilidade de alimento ao agravamento da pobreza, o futuro dos sistemas agroalimentares depende da disposição geral de apreciar todos os produtores de alimentos, grandes ou pequenos, para reconhecer esses verdadeiros custos e entender como todos nós contribuímos para eles e quais ações precisamos tomar.
A maximização do lucro e crescimento criaram um setor que necessita de enormes quantidades de energia no topo da cadeia de suprimentos para dar conta da demanda. É necessário cerca de 70% da água doce disponível no mundo para que a agricultura funcione, o que acaba diminuindo a fertilidade dos solos naturais, principalmente devido à aragem excessiva da terra e o uso de agrotóxicos perigosos que danificam permanentemente o solo e as águas subterrâneas. Soma-se a isso o desmatamento da floresta tropical, os meios de subsistência das plantas, animais e povos indígenas.
Não é para menos que o setor de alimentos é um dos principais contribuintes para as mudanças climáticas, responsável por até 40% das emissões de gases de efeito estufa em todo o mundo. Com isso, muitos governos lançaram iniciativas para tentar reduzir os custos ambientais ocultos, como foi o caso da Estratégia do Prado ao Garfo, da União Europeia, cujo objetivo é garantir que um quarto das terras agrícolas europeias seja biológica e também que haja uma redução de fertilizantes em pelo menos 20% até 2030.
O problema é que essa equação é praticamente um tiro no pé. Para atingir esses objetivos, deve haver também uma redução da produtividade global das explorações agrícolas, o que significa que os países europeus precisariam importar mais alimentos do Brasil, por exemplo, incentivando verticalmente o desmatamento aumentando, de qualquer forma, os custos ambientais ocultos. Ou seja, os governos precisam resolver os problemas do seu sistema alimentar, não apenas transferir a responsabilidade para outras partes do mundo.
Reduzir os custos ocultos exige ação governamental e escolhas individuais diretas para uma nova percepção de para onde o sistema alimentar mundial está levando a população. A FAO já trabalha no relatório do próximo ano com uma série de estudos de caso e iniciativas para que os países comecem a tentar consertar o sistema alimentar mundial que, apesar de sua enorme produção, causa a fome de 768 milhões de pessoas.