Artes/cultura
18/01/2021 às 10:00•3 min de leitura
Em 1892, Andrew Borden era um dos homens mais ricos de Fall River, Massachusetts (EUA), com patrimônio líquido de 10 milhões de dólares. A sua ascensão ao posto de chefe do maior banco da cidade e detentor do título de maior dono de propriedades da época não atraía inveja da comunidade, mas sim inimigos de poder. O caminho do severo homem era cheio de quinas escusas.
Ironicamente, Borden era modesto em um nível quase indulgente. A sua mansão ficava em uma colina longe do centro da cidade, onde repousava a nata social, e não dispunha de eletricidade ou água encanada, o que era absurdo para alguém tão rico. Entre 1850 e 1860, Sarah Borden, esposa do milionário, deu à luz Eleonora Borden e Lizzie Borden. Devido a complicações, a mulher morreu logo em seguida.
Em 1866, Abby Durfee Gray se tornou a nova senhora Borden, e tudo indica que a relação das filhas com o pai piorou a partir disso. Lizzie era a que mais repudiava o casamento, pois fazia 3 anos que a mãe tinha morrido e era claro que a nova mulher estava apenas atrás do dinheiro do pai.
Conforme os anos se passaram, Lizzie se tornou influente na comunidade religiosa, adorada pelas crianças, pois lecionava para elas e para imigrantes, além de dedicar parte do seu tempo à caridade. O relacionamento com o pai era estritamente cordial, sem proximidade afetiva, assim como com Abby.
Foi por volta de 1890 que esse respeito se perdeu de vez, dando lugar a um clima de tensão quando Borden resolveu colocar várias de suas propriedades no nome da esposa.
Na manhã de 4 de agosto de 1892, Borden chegou em casa para o almoço e perguntou a Bridget Sullivan, uma empregada irlandesa, se ela tinha visto Abby. Com a resposta negativa, Lizzie, que descia as escadas, disse que a esposa do pai saiu logo depois dele, tendo recebido um bilhete de um amigo.
O patriarca estava na sala quando Bridget o comunicou que não estava se sentindo bem, possivelmente em decorrência de um resfriado, e foi se deitar um pouco em seu quarto, onde teria cochilado. Ela disse que só despertou após ouvir os gritos apavorados de Lizzie dizendo que o pai estava morto.
Lizzie relatou que encontrou o pai esparramado como uma boneca no sofá da sala, com sangue por toda parte. O rosto dele estava tão desfigurado que os olhos tinham sido partidos e estavam caídos perto do ombro direito em uma pasta sanguinolenta. O homem foi atingido 11 vezes por uma machadinha. Abby foi encontrada em seu quarto, caída de bruços em uma poça de seu próprio sangue. Ela tinha sido golpeada acima da orelha 19 vezes com a mesma arma.
A investigação policial encontrou no porão uma machadinha com o cabo quebrado, usada por Borden no dia anterior para matar pombos no celeiro. Ela foi considerada a arma do crime, e a polícia suspeitava que o cabo tinha sido cortado por estar sujo de sangue, mas fora isso não havia evidências. Na época, testes para detectar impressões digitais já estavam sendo feitos na Europa, mas os estadunidenses não acreditavam que era um método confiável e se recusaram a realizá-lo no objeto.
Em testemunho, a história de Lizzie não fechava e era contraditória. Ela disse que estava no celeiro quando ouviu o primeiro grito, mas os médicos atestaram que Abby morreu por volta das 9h, antes de Borden sair. Bridget não sabia de nada nem tinha visto qualquer coisa. Emma, a irmã, não estava na cidade. Os policiais não periciaram a casa, pois Lizzie disse que não estava se sentindo bem. A princípio, eles não tinham motivos para suspeitar da professora de 30 anos de idade, rica e adorada. Quando isso aconteceu, já era tarde demais.
Com a falta de provas, a mulher foi absolvida em 20 de junho de 1893, criando um furor ainda maior. Os assassinatos grotescos já tinham sido banalizados pela mídia e se tornado sinônimo de atração. Foram especulados romance lésbico, vingança, abusos sexuais e complô. A mansão chegou a ser invadida por pessoas que queriam levar um pedaço do local como recordação.
Exatamente 128 anos depois, os horrores continuam a fascinar e ser motivo de inspiração para séries de televisão, filmes, livros e até roteiro turístico com parada no museu que se tornou a casa da família Borden, na qual é possível tirar uma foto deitado na posição em que os cadáveres foram encontrados. O que mantém vivo o prestígio cultural obsceno ao redor de um assassinato?
Talvez seja o fato de ter todos os elementos de uma tradicional tragédia grega: um crime na aristocracia, tendo como elemento principal uma típica agrura mundana, cercado por uma tensão permanente e com final trágico e infeliz. Lizzie ganhou a independência financeira que sempre desejou e passou o resto da vida viajando, até que morreu e foi enterrada no Oak Glove Cemetery, ao lado dos pais que ela certamente assassinou.
O teor obsceno e as incertezas do crime se tornaram mitologia na cultura norte-americana. O caso de Lizzie Borden foi o primeiro a ser veiculado em massa e para o mundo inteiro, enquanto o jornalismo passava por um período de forte transição. Além disso, serviu para expor a podridão da alta sociedade e romper o estigma histórico de que só os pobres eram violentos e assassinos. O Dr. Jean Kim, psiquiatra da Universidade George Washington, reforça que um assassinato memorável como esse destaca uma visão social ou realidade particular que a época tinha reprimido ou ignorado.
Com a moldura de um melodrama vitoriano, Lizzie Borden e toda a sujeira obscura que acompanha a sua imagem representaram o início de uma era de verdades.