O grave problema com consumo de bebida alcoólica na Coreia do Sul

18/06/2024 às 18:004 min de leituraAtualizado em 18/06/2024 às 18:00

A cultura na Coreia do Sul é implacável de todas as formas possíveis. O sistema de ideais confucionista importado da China e oficializado em meados de 1390 beneficiou a antiga sociedade agrícola em alguns aspectos, como valorizar o trabalho duro e proteger seus semelhantes. Afinal de contas, o país alcançou um crescimento notável nos últimos 80 anos desde o final da Segunda Guerra Mundial, se colocando como a 14ª maior economia do mundo e a 4ª maior da Ásia, se livrando do fantasma da pobreza enquanto colônia agrária.

A questão é que, com o crescimento e a modernidade, a estrutura de governo falhou em fornecer políticas de conscientização ou ressignificação desses valores que modelaram os coreanos como sociedade. Como resultado, o trabalhar a qualquer preço facilitou o suicídio como escapismo; a obediência aos valores cimentou muitas mulheres em locais de subserviência; e a ordem e decoro impediram que muitos dissessem não.

Um bom exemplo disso é que, se sentar à mesa de um restaurante após o horário de trabalho e se recusar a tomar álcool, é considerado um desrespeito passivo de demissão e ostracismo. Mas não é só por essa razão que a Coreia do Sul possui um grave problema com o consumo de bebida alcoólica.

Os novos alcoolistas

(Fonte: Getty Images/Reprodução)
A Coreia do Sul possui uma sociedade repleta de alcoolistas funcionais. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

A sociedade ainda carrega a imagem estereotipada de um alcoólatra: uma pessoa incapaz de manter o próprio emprego, em constante conflito com seus relacionamentos românticos e familiares, muitas vezes até na sarjeta, e sem rumo. Mas é aí que está o engano. Muitos dependentes químicos conseguem levar uma vida normal, com todas as responsabilidades do cotidiano de uma pessoa não adicta, convivendo com a doença camuflada em sua psicologia. Isso é chamado de alcoolismo funcional.

“Esses alcoolistas trabalham em tempo integral e até alcançam sucesso profissional. Eles têm famílias estáveis. Superficialmente, não há problema algum. Alcoolistas altamente funcionais ou altamente adaptativos podem passar vários anos sem perceber que têm um problema”, disse Lee Hae-kook, diretor da Academia Coreana de Psiquiatria de Dependência e médico do Hospital Uijeongbu St. Mary, em entrevista ao Hankyoreh.

Essas pessoas não vêm problema no modo que ingerem bebida alcoólica diariamente, aumentando a quantidade de doses até que não saibam mais discernir seu estado são do torpor causado pelo teor do álcool. Esses efeitos nocivos e progressivos podem e vão interferir em diversos aspectos da vida da pessoa.

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Um sul-coreano consome cerca de 14 doses de bebida alcoólica por semana. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

Em 12 de dezembro, um homem de 60 anos se apresentou à Delegacia de Polícia de Gangdong, em Seul, para denunciar o médico que havia suturado uma ferida em seu rosto na noite anterior. Em seu depoimento, o homem alegou que o profissional, na casa dos 20 anos, estava sob forte influência de álcool.

A polícia foi ao Hospital Geral de Gangdong-gu e o exame que fizeram no médico detectou um índice "bem expressivo" de álcool em seu sangue, como relataram ao Channel A, uma rede sul-coreana de televisão por assinatura. O médico, no entanto, não foi processado porque não há regulamentação que puna o ato de estar embriagado durante uma prática médica. Contudo, conforme a Lei Médica, a qualificação da licença do profissional pode ser suspensa em um ano porque a prática se enquadra no “ato de ferir gravemente a dignidade pessoal de um profissional médico”.

Aliviando o estresse

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O custo socioeconômico do consumo de álcool na Coreia é de US$ 11,560 milhões. (Fonte: Getty Images / Reprodução)

O caso foi um escândalo no início de 2024 no país e serviu para expor ainda mais o problema que é a cultura do consumo de bebida alcoólica na Coreia do Sul que, só em 2019, resultou em um custo socioeconômico de 15,8 trilhões de wons, o equivalente à cerca de R$ 62 bilhões.

O que aconteceu foi apenas a ponta do iceberg das centenas de notícias anuais envolvendo motoristas dirigindo embriagados, o mercado clandestino de falsificação de testes de bafômetro, e mortes por negligência devido ao torpor alcoólico de alguns profissionais.

Em 2022, a pesquisa feita pelo Statista revelou que cerca de 88% dos sul-coreanos, com idades entre 19 e 29 anos, afirmaram que faziam consumo de álcool. Oito anos antes, o Relatório de status global da OMS sobre álcool e saúde de 2018, da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou que o volume médio de consumo de álcool pelos coreanos com 15 anos ou mais foi de 10,2 litros per capita, um número superior aos volumes médios consumidos por essas faixas etárias em qualquer país do mundo.

Colocando em perspectiva, só o ato de beber por dia dois ou mais copos de Soju, um tradicional destilado coreano feito de arroz, pode aumentar em 1,4 vezes a taxa de incidência de câncer de fígado. O Euromonitor fez um levantamento em 2014 que mostrava que os sul-coreanos consomem, em média, 14 doses de bebida alcoólica por semana, enquanto os estadunidenses bebem cerca de 3 doses.

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A Coreia do Sul é um dos países com jornadas de trabalho mais longas.(Fonte: Getty Images/Reprodução)

Dados recolhidos pelo Statistics Korea revelaram que 5.100 pessoas morreram em 2020 devido a doenças relacionadas ao consumo de álcool na Coreia. Isso significa 10 mortes a cada 100 mil pessoas, a maior associada à bebida alcoólica, segundo a agência de estatísticas.

A Coreia do Sul chegou a esse nível porque o álcool se tornou parte essencial da vida diária de muitos dos cidadãos, fazendo jus ao histórico que a bebida tem em representar um papel importante no engajamento social e formação de vínculos.

Em entrevista ao Al Jazeera, o banqueiro Suh Seung-Beom, morador de Seul, disse que reúne contatos de negócios e amigos para beberem depois do trabalho. Apesar de ficar embriagado rapidamente e continuar bebendo, ele negou aos jornalistas que o objetivo seja esse. “É apenas um meio de construir laços nos negócios e com as pessoas, já que no trabalho não podemos fazer isso”, revelou.

Assim como ele, um de seus parceiros, Brent Lee, também não acredita que bebam muito, mas sim que o consumo de álcool é algo benéfico para a sociedade porque ajuda a aliviar o estresse. Afinal, estamos também falando de uma das sociedades com alguma das jornadas de trabalho mais longas do mundo, são 40 horas semanais, podendo chegar a 52 horas em algumas profissões.

Lucro acima de tudo

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O tamanho total da indústria de bebidas alcoólicas sul-coreana atingiu US$ 8,6 bilhões em 2023. (Fonte: Getty Images/Reprodução)

Há 20 anos que a Associação de Saúde Pública da Coreia do Sul formula políticas que podem reduzir o consumo de álcool no país, como aumentar o preço, regular o quanto é vendido, e limitar os anúncios. Nenhuma delas nunca passaram na Assembleia Nacional.

Talvez seja possível encontrar o motivo disso nos números. Tendo como base os dados relativos à produção local e os valores de importação, o tamanho total da indústria de bebidas alcoólicas sul-coreana atingiu US$ 8,6 bilhões em 2023, conforme o Korea Market Insights. Há mais de 500 importadores licenciados de bebidas no país, com os 10 principais detendo uma participação de mais de 50% de atuação no mercado.

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Um coreano médio consome cerca de 53 garrafas de Soju por ano. (Fonte: Getty Images/Reprodução)

Apesar de um crescente apelo por bebidas importadas, o Soju segue na liderança entre o gosto popular, com um coreano médio consumindo cerca de 53 garrafas por ano da bebida. O mercado de Soju deverá crescer 0,93% entre 2024-2029, resultando em um volume doméstico de US$ 2,44 bilhões, conforme o Statista Market Insights.

O governo não faz nada em relação ao problema que é a bebida alcoólica porque investe apenas uma fração dos impostos que obtém de suas vendas em campanhas de conscientização da população. Enquanto isso, o lobby empresarial pressiona os formuladores de políticas a não agirem, afinal, foi sob o lucro que a sociedade sul-coreana se (re)construiu.

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