Ciência
08/11/2024 às 12:00•4 min de leituraAtualizado em 08/11/2024 às 12:00
Era 1942 quando o chinês Poon Lim se encontrou à deriva em uma jangada no oceano Pacífico, onde passou 133 dias, impressionando o mundo pela sua aventura de sobrevivência e revolucionando as políticas marinhas. Quarenta e um anos mais tarde, foi a vez de Tami Ashcraft sobreviver por meios precários e desafiando todas as estatísticas ao ser atingida pelo notório furacão Raymond no mesmo oceano em que Lim se consagrou.
Ainda teve Steven Callahan, Salvador Alvarenga, Terry Jo Dupperault e outras pessoas que se viram cercadas por dezenas de quilômetros de água e sem ninguém para ajudá-las. A diferença delas para Dougal Robertson, a bordo do veleiro Lucette, que naufragou no oceano Pacífico, é que elas estavam sozinhas.
Nascido em Edimburgo em 1924, Robertson ingressou na Marinha Mercante Britânica por ser apaixonado por navegar, mas viu sua paixão se tornar em seu pior pesadelo em 1942, quando sua esposa e filho morreram no ataque ao barco de passageiros e carga SS Sagaing, no porto de Trincomalee, uma ação das tropas imperiais japonesas. Ele deixou a vida marítima e passou a trabalhar como produtor de leite.
Vinte e nove anos depois, casado novamente e pai de quatro filhos, Robertson não imaginava que voltar aos mares pudesse significar quase perder uma família inteira pela segunda vez.
O veleiro Lucette foi comprado pela família em Malta, um país insular no sul da Europa, e foi fruto de anos de economias e de dois sonhos de Robertson: morar nos mares e espantar o medo do passado que o assombrava.
Em 27 de janeiro de 1971, a bordo da escuna de madeira de 13 metros de comprimento, construída em 1922, Dougal Robertson (47), sua esposa Lyn e seus filhos Douglas (então com 17 anos), Anne (16) e os gêmeos Sandy e Neil (9), partiram do porto de Falmouth, na Cornualha, para uma nova vida, dessa vez no oceano.
Durante um ano e meio, eles navegaram pelo Atlântico, parando em vários portos de escala no Caribe, inclusive, foi em um deles, nas Bahamas, que a filha Anne decidiu ficar. A família seguiu pelo Canal do Panamá, rumo às Ilhas Galápagos e além para as ilhas do Pacífico Sul.
A viagem tranquila terminou na noite de 15 de junho de 1972 com um estrondo, quando estavam a cerca de 300 quilômetros de Galápagos. Robertson lembra que o veleiro Lucette foi erguido, chovendo água para todos os cantos, rangendo e estralando. Ao olhar para o oceano, ele se deparou com três baleias orcas, responsáveis por destroçar o barco. Antes que a família pudesse se dar conta, estavam naufragando.
Ainda em pijamas, todos subiram a bordo de um bote de casco rígido. Robertson só teve tempo de equipá-lo com algumas ferramentas, provisões e água antes do Lucette afundar nas águas do Pacífico. Usando o bote como um rebocador movido por uma vela equipada com júri, eles seguiram para o marasmo, uma zona intertropical conhecida pelo seu clima monótono e sem vento.
O problema é que a jangada estava furada, ou seja, era uma questão de tempo para afundar.
Robertson esperava que encontrasse chuva no marasmo, uma vez que a água era escassa no barco, mas não foi o que aconteceu. Quando a água acabou, todos passaram a beber sangue de tartaruga que pescavam, bem como se alimentavam de dourados e peixes-voadores. Frutas, pão e biscoitos que resgataram do Lucette foram racionados e duraram o suficiente.
A vida na jangada foi sombria. Sentados com água até o peito, todos ficaram cobertos de feridas devido à água salgada e o calor intenso e sol a pino escamaram o corpo deles por inteiro. Para ter o mínimo de cômodo, a família se revezava para sentar no único assento que estava seco. Dormir era uma tarefa impossível, porque, assim que cochilavam, suas cabeças batiam na água e eles se ressaltavam. Lyn, inclusive, temia que os gêmeos se afogassem durante o sono, então dificilmente ela pregava os olhos.
Dezesseis dias depois, a jangada se tornou inutilizável e a alternativa foi se espremer em um bote salva-vidas inflável de 3 metros de comprimento. A essa altura, as chances de sobrevivência já estavam muito contra a família. Ninguém sabia que eles estavam desaparecidos, além de que também não estavam em uma rota marítima, portanto, as chances de serem avistados e resgatados eram remotas.
Suas chances dependiam de uma embarcação extremamente vulnerável, considerando o peso a bordo, e de suas habilidades de sobrevivência. E para agravar seus problemas, os tubarões se tornaram um inimigo à espreita de qualquer deslize.
Ou seja, viver no bote inflável, apesar de seco, não foi fácil. No 23º, a família pensou que seria o seu fim porque choveu tanto que quase foram inundados. Aquela foi a única vez que Roberston pensou em desistir, e teria o feito se sua esposa não tivesse o trazido à realidade.
Lynn foi uma grande pedra angular para a sobrevivência da família. Com seu conhecimento de enfermagem, ela esfregou óleo de tartaruga nos furúnculos de água salgada e manteve os filhos e o marido hidratados por meio de enemas improvisados. Ela sabia que a água no fundo do bote era venenosa se tomada por via oral porque possuía água de chuva, sangue e miudezas de tartaruga. Mas se tomada por via retal, o veneno não passaria pelo sistema digestivo e eles estariam a salvos.
Quando eles foram resgatados pelo barco de pesca japonês Toku Maru, após 38 dias à deriva, ao detectar um sinalizador de socorro, estavam tão desidratados que não urinavam há 20 dias e tinham a língua tão inchada de sede que mal conseguiam se comunicar. A família foi encaminhada ao Panamá, onde recebeu os primeiros-socorros.
Apesar de toda a jornada de sobrevivência, o naufrágio do veleiro Lucette cimentou para sempre a difícil relação da família. Robertson se divorciou de Lynn, com quem teve discussões terríveis durante o tempo que passaram no bote. Os filhos, em vida adulta, por meio de várias entrevistas, foram os responsáveis por esclarecer os fatos tocantes e fortes que não foram relatados no livro do pai, Survive the Savage Sea: A Manual, lançado no ano seguinte à odisseia marítima da família.
Douglas, o filho mais velho, escreveu um forte depoimento em seu The Last Voyage of the Lucette, em que relatou uma vida pregressa recheada de abusos físicos, morais e psicológicos por parte do pai antes de decidirem embarcar no veleiro.
O marinheiro Dougal Robertson morreu em 1992, aos 67 anos, arrebatado por um câncer, e nunca se conformou que havia submetido a família ao desastre do Lucette. O filho mais velho era quem sempre dizia que eles só estavam vivos, apesar de tudo, por conta dele.
Inclusive, a família não foi a única a se beneficiar da inteligência marítima e das técnicas de sobrevivência de Robertson. Afinal, pessoas como Steven Callahan, que ficou à deriva por 76 dias no Oceano Atlântico em 1981, sobreviveu ao próprio naufrágio porque tinha uma cópia a mão do manual escrito pelo marinheiro torturado que foi Dougal Robertson.