Ciência
02/11/2024 às 03:00•5 min de leituraAtualizado em 02/11/2024 às 03:00
A década de 1920 foi um campo minado em todos os aspectos da vida dos Estados Unidos, desde negócios suspeitos para ganhar dinheiro e enriquecer rápido, como o famoso Esquema de Ponzi, a curas milagrosas e procedimentos médicos que garantiam salvar vidas. A falta de regulamentação e conhecimento técnico e prático, combinado à inaptidão das autoridades em rastrear esse tipo de conduta, serviu de adubo para o país se tornar a terra dos charlatões.
A rádio pública do início do século passado foi, inclusive, um divisor de águas na disseminação de vigaristas, que usavam as ondas de rádio para espalhar informações falsas e vender seus esquemas de forma gratuita.
Foi assim que J. R. Brinkley, o infame médico charlatão que vendia uma cura experimental de rejuvenescimento por meio de transplante de gônadas de bodes em homens, mudou o curso das instituições americanas para sempre ao explorar as frustrações sexuais e fomentar a antipatia pública pelos médicos de forma destrutiva.
Nascido John Romulus (mais tarde Richard), em 8 de julho de 1885, em Beta, na Carolina do Norte, Brinkley teve seu pai, um médico rural, como referência para decidir “entrar” para a medicina. Sua mãe, Sarah Candace Burnett, era sobrinha da então esposa de seu pai, Sarah T. Mingus, que o criou a partir dos 5 anos depois que sua mãe morreu de tuberculose e pneumonia.
A família se mudou para East LaPorte, ainda no condado de Jackson, só que perto do rio Tuckasegee, com o pouco dinheiro que faziam para sobreviver. Aos 10 anos, Brinkley se tornou oficialmente órfão com a morte de seu pai, e cresceu na região, aos cuidados de sua tia, terminando seus estudos aos 16 anos enquanto trabalhava transportando correspondência entre as cidades locais. Seu sonho, no entanto, ainda era ser um médico como seu pai.
Brinkley chegou a frequentar o Ecletic Medical College, no Kansas, mas nunca se formou. Na verdade, pouco se sabe o quanto ele aprendeu ou quanto tempo passou na faculdade, considerando que teve uma educação primária aleatória e inconsistente. O que se sabe, porém, é que o homem conseguiu praticar a medicina no Arkansas por meio de uma licença de graduação e vários diplomas falsos – o que era algo fácil de conseguir naquela época.
Aos 22 anos, ele já havia criado um programa de medicina em uma rádio com sua primeira esposa para vender tônicos caseiros. Foi assim que o jovem descobriu o poder que poderia ter sob o público ao criticar os médicos convencionais, aprendendo técnicas de se conectar com as pessoas apelando tanto para seus valores quanto para seus medos.
Aos 31 anos, o falso médico conseguiu se estabelecer em Milford, no Kansas, em meados de 1916, ao responder a um anúncio que procurava um médico de família para a pequena comunidade rural. Ali ele começou a fazer história.
Brinkley prestou cuidados louváveis para os habitantes de Milford quando a gripe espanhola chegou à comunidade, inclusive, foi no meio do caos da doença que sua prática da medicina tomou um novo rumo. Ao ser consultado por um fazendeiro idoso que estava tendo problemas de fertilidade, o médico charlatão sugeriu implantar os testículos de um bode no homem como um meio de restaurar sua virilidade, uma vez que acreditava que o animal era uma fonte de saúde e vigor sexual mesmo durante uma idade avançada.
Aparentemente, o resultado da cirurgia deu certo no fazendeiro, que espalhou a notícia pela cidade e atraiu um segundo paciente, William Stittsworth, que solicitou não apenas a operação da glândula caprina em si, mas de ovários caprinos em sua esposa. Em um ano, o casal deu à luz a um filho.
O xenotransplante de Brinkley que prometia recuperar a juventude fértil de homens foi divulgado em jornais de todo o país, impulsionado pelo próprio médico, que contratou um consultor de publicidade para divulgar informações sobre seu procedimento milagroso e inovador.
Como resposta, o médico atraiu atenção de homens proeminentes da época, incluindo J. J. Tobias, chanceler da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, e de Harry Chandler, dono do Los Angeles Times e da primeira estação de rádio da cidade. Após o procedimento, Chandler expressou sua gratidão exaltando a virtude do método de Brinkley aos quatro ventos, atraindo uma torrente de pacientes, notoriedade e tanto dinheiro que permitiu que o charlatão construísse o próprio hospital em Milford.
Vale ressaltar que, naquela época, a ideia de xenotransplante não era algo novo, tampouco considerada absurda, visto que os esforços para implantar enxertos de sangue e pele animal em humanos foram tentados já no século XVII. Porém, os especialistas ainda encaravam tudo o que foi tentado como meramente experimental.
Enquanto alegava que tinha uma ampla gama de cura para doenças, desde casos terminais a pequenos inconvenientes corporais, Brinkley administrou clínicas e hospitais, lançou livros, deu palestras e entrevistas por todo o país. Apesar de os críticos da comunidade médica desacreditarem seus métodos e expor suas credenciais falsas, o charlatão tinha o carisma e a lábia a seu favor, em uma era em que ter uma boa oratória era o suficiente para ser levado a sério.
Além disso, em pouco tempo, o falso médico construiu um império de sujeira, com conexões com grandes nomes do entretenimento e do governo, selando laços com pessoas em comunidades locais enquanto usava a mídia de massa emergente para perpetrar seus golpes.
Seu procedimento medicamente inútil possibilitou que ele lançasse a própria estação de rádio, a XER, que se tornou a mais poderosa do mundo no México, fora do alcance dos reguladores nos EUA. Sua rádio lançou a era blaster de fronteira, que tinham sinais de transmissão muito mais poderosos do que as estações americanas, podendo ser ouvidas em grandes regiões do país, desde a década de 1930 até meados da década de 1970. Nenhuma rádio americana conseguiu ser maior do que as estações blasters na fronteira mexicana, e isso irritou os poderosos da indústria.
Em 1930, o Conselho Médico do Kansas realizou uma audiência e decidiu revogar a licença médica do charlatão, afirmando que ele realizou um "charlatanismo organizado e muito além". Seis meses depois, a Federal Radio Commission (FRC) não renovou a licença de transmissão de sua estação em Milford, a KFKB, e ele foi considerado culpado de publicidade que violava tratados internacionais. O FRC também alegou que Brinkley exibiu material obsceno e que sua série Medical Box Question era contrária ao interesse público.
Ou seja, ficou claro para a máfia das estações de rádio que seu poder precisava ser podado porque ele estava indo longe demais. Brinkley tentou correr atrás do prejuízo lançando uma campanha para governador do Kansas três dias antes da votação, mas perdeu a corrida para o democrata Harry Hines Woodring.
Apesar desses contratempos, John Brinkley ainda era homem um dos homens mais ricos da América em 1936, mesmo morando no Texas, sem sua habilitação médica e focando sua prática na realização de vasectomias e em "rejuvenescimento da próstata". Ele ainda cobrava mais de US$ 1 mil por um procedimento, e possuía uma demanda que não parava de aumentar.
Mas isso acabou com o surgimento de Norman Baker, o esquivo médico que usou o rádio blaster de fronteira para anunciar que fazia procedimentos semelhantes a preço popular, fazendo o público pobre e de classe média cair em seu gosto.
Em 1938, já abalado pelo sucesso de um novo charlatão, Brinkley levou mais um golpe em sua carreira, dessa vez do médico Morris Fishbein, editor do Journal of the American Medical Association, que publicou um livro em que revisava toda a trajetória de Brinkley na medicina. Fishbein foi processado por ele, mas ganhou a causa. Esse foi apenas o começo de uma série de ações judiciais contra o falso médico. Três anos depois, Brinkley declarou falência, e em 26 de maio de 1942, ele sofreu de insuficiência cardíaca enquanto estava na cidade texana San Antonio.
Um dos charlatões mais proeminentes da história da medicina norte-americana morreu praticamente sem um tostão, como resultado de uma vida e carreira construída sob fraudes, negligência e homicídio culposo. Ele deixou um legado de manipulação de massas e técnicas habilidosas de picaretagem, além de uma colcha de retalhos de mitos e relatos de pessoas que tiveram acesso a sua vida íntima.