Ciência
25/04/2024 às 20:00•4 min de leituraAtualizado em 25/04/2024 às 20:00
Já sabemos que não fomos feitos para viver de carne, mas mesmo assim consumimos uma média de 346 milhões de toneladas por ano dessa proteína, sendo que há projeções de um aumento de 44% até 2030, alcançando 453 milhões anuais. Uma pesquisa feita pelo Statista mostrou que cerca de 86% das pessoas entrevistadas em 39 países alegaram que mantém uma dieta rica em carne.
A indústria da carne sofreu uma rápida aceleração desde a segunda metade do século XX, levando o planeta e sua população ao extremo com o rendimento em larga escala. Estamos falando de mais de 70 bilhões de animais terrestres abatidos anualmente, como mostrou o estudo do Faunalytics em 2018, enquanto 60% das terras agrícolas do mundo são utilizadas apenas para essa finalidade.
Sabemos que para manter o nível de produção, essa indústria precisa confinar milhares de animais, normalmente em condições insalubres, em locais superlotados e totalmente não naturais, criando o ambiente propício para a incubação de doenças.
Mas esse é só um lado do problema. Essa é a verdade por trás das condições de trabalho nos abatedouros das fazendas industriais.
Por meio de consequências desastrosas em escala global, a todo o momento enxergamos os resultados do que produzir demais no setor da indústria pecuária têm atraído para a saúde do planeta e dos seus habitantes, ainda que de maneira silenciosa ou indireta.
Afinal, nem todos sabem que desde 1970 já surgiram cerca de 500 novas doenças zoonóticas, de gripe aviária ao ebola, oriundas da relação cada vez mais disruptiva entre humanos, animais e seu habitat natural. Sabem menos ainda que trabalhar em uma fazenda industrial é algo tão perigoso quanto exaustivo. O Employment Statistics aponta que mais de 500 mil pessoas nos Estados Unidos trabalham em matadouros, uma das profissões consideradas mais perigosas do país.
Isso porque, em sua empreitada em manter um volume de produção que atenda à demanda mundial que apenas cresce, as corporações multimilionárias conscientemente colocam em risco a segurança dos seus trabalhadores. Uma vez que há décadas os órgãos estaduais e federais falham em instituir, monitorar ou cumprir leis trabalhistas básicas nesse setor, as empresas acabaram por criar um verdadeiro lobby em que elas definem e seguem as regras. Com isso, não apenas os direitos dos trabalhadores são comprometidos como os animais à espera do abate, sofrem.
China, EUA e Brasil são os países com mais matadouros, e o termo "a qualquer custo" é o que define as condições de trabalho e produção. Os estadunidenses são conhecidos por abusarem de uma mão de obra estrangeira para engrossar sua linha de produção, contratando pessoas pretas e latinas que vivem em comunidades de baixa renda. A Food Empowerment Project estima que cerca de 38% dos trabalhadores de abatedouros nasceram fora dos EUA. Uma grande porcentagem também trabalha conscientemente sem documentação para conseguir sobreviver.
A ameaça de demissão alimenta um ambiente hostil e perigoso, desencorajando os trabalhadores a relatar preocupações de segurança, lesões ou outros problemas graves. Um exposé em 2013 feito por um repórter investigativo da VegNews mostrou ao mundo as mazelas da profissão.
“Você tem que ser capaz de pendurar cerca de 35 aves por minuto, mesmo quando os músculos de suas mãos e as articulações de seus dedos ficam tão doloridas que não consegue mexê-las”, disse o repórter à revista.
Muito embora os matadouros sejam altamente mecanizados, o trabalho manual ainda se faz necessário em várias etapas de produção, como sangria, eliminação de gordura da carne, músculo e osso, e entre outras etapas. Recebendo às vezes menos que US$ 2 mil por mês, esses trabalhadores enfrentam jornadas diárias de mais de 10 horas, sem dias de folga ou férias, executando ações repetitivas sem parar, chegando a urinar diretamente no equipamento por não poder fazer uma pausa.
Como resultado, os animais, que já são submetidos a instalações minúsculas em péssimas condições, acabam atacando os funcionários devido ao estresse que sofrem. Segundo o repórter da VegNews, tocas, óculos de proteção, avental, botas e máscaras não impedem dos animais deixarem suas marcas naqueles que os manuseiam.
Os funcionários acabam entrando em contato direto por pele ou vias aéreas com sangue, urina e fezes dos animais que se debatem e contorcem freneticamente. “Entra nos olhos, nariz, boca, nos ouvidos. Não há uma descrição adequada como é ficar trabalhando por horas com fezes de galinha por todo o seu corpo. Não importa quanta roupa ou fita use para se proteger, é absolutamente inevitável”, confessou ele.
O repórter passou 3 anos por dentro das instalações da Tyson Foods, a mesma em que a jornalista Hannah Dreier, do The New York Times, desmascarou em 2023. Com a Perdue Foods, essas companhias não só produzem um terço das aves vendidas nos EUA, como também estão sob investigação federal por explorar mão de obra de crianças migrantes, submetidas à lavagem de matadouros e à linha de produção em suas fazendas industriais.
Dreier se concentrou na história de Marcos Cux, cujo braço foi esmagado em uma correia de um equipamento de processamento de carne em 2022 enquanto ele higienizava uma área de desossa na fábrica da Perdue Foods. Ele estava na oitava série do ensino fundamental. Cux foi apenas uma das centenas de crianças de até 13 anos encontradas nas fábricas da empresa na costa leste da Virgínia.
Parte de uma nova economia de exploração que nasceu no cenário pós-pandêmico, Cux e seus colegas de profissão são apenas uma das milhares de crianças mexicanas e centro-americanas que vieram sozinhas para os EUA desde 2021 e acabaram em empregos perigosos e extenuantes. Os poderosos donos de frigoríficos seguem alegando que não têm conhecimento de toda sua linha de abastecimento, portanto, não podem ser culpados de "eventuais casos de exploração infantil".
Só que esse não é o único problema. A estrutura inteira de trabalho é apoiada em comportamentos exploratórios e criminosos. Os chefes das corporações sabem que reclamar ou desafiar seu poder, ou até mesmo depositar fé no sistema jurídico americano, exige a coragem e o privilégio que um imigrante não tem.
Dessa forma, respaldados também pelo completo fracasso das agências reguladoras estaduais e federais na proteção destes trabalhadores, mantêm-se o produzir sem parar e o trabalhar a qualquer preço.