Ciência
14/11/2023 às 14:00•3 min de leitura
No final do primeiro ato do bombástico espetáculo musical Cats, baseado nos poemas de T.S Elliot, e escrito e composto por Andrew Lloyd Webber, a personagem Grizabella canta a canção “Memory”, considerada uma das mais emblemáticas da história moderna do teatro musical americano. A música é uma ode à nostalgia, aquela emoção agridoce sentida quando uma experiência do passado é colocada em perspectiva com a vida atual.
Isso se deve pelas lembranças que incluem impressões potentes de alguns sentimentos, como medo, felicidade, satisfação. São elas que parecem mais propensas a serem lembradas e podem constituir partes importantes da memória autobiográfica. O aprimoramento emocional da memória ajuda a preservar informações úteis para o comportamento humano, como, por exemplo, saber como se comportar diante de determinada situação.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
A saudade do passado é desencadeada pela nostalgia, uma experiência que pode incluir cheiros, gostos, sons, objetos, épocas do ano, sentimentos ou muitas outras características. A mente está mais propensa a experimentar a nostalgia quando em um humor relativamente baixo, bem como na presença de entes queridos ou revirando o feed de uma rede social.
Um estudo publicado na Current Directions in Psychology Science mostrou que as pessoas que costumam sentir muita nostalgia geralmente estão atravessando episódios de tristeza. Alguns acreditam que é por esse motivo que a nostalgia já foi considerada um transtorno psiquiátrico.
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O século XIX testemunhou a proliferação e popularização dos hospitais psiquiátricos, principalmente na Europa, dispostos a isolar da sociedade e tratar pessoas com transtornos psiquiátricos, uma vez que era considerado imoral lançá-las em cadeias. Mas, na verdade, essas instituições atuaram como meios de controlar seus pacientes e os torturar em experimentos médicos para os avanços científicos da época, desde mutilações, tentativas de implantes, recursos engenhosos de sofrimento até outras práticas mais obscuras.
Além disso, o governo fez dos hospitais psiquiátricos verdadeiros depósitos humanos, despejando pessoas das quais queriam se livrar, tendo elas distúrbios ou não. Em meio a esse caos estavam aqueles que sofriam por serem nostálgicos demais, considerados psicóticos.
Por fatores econômicos, políticos e sociais, aconteceram vários êxodos ao longo do século XIX, como a migração irlandesa durante a Grande Fome da Batata de 1840 e o deslocamento dos chineses para os Estados Unidos para fugir da Guerra do Ópio de 1839. Em seu livro What Nostalgia Was: War, Empire, and the Time of a Deadly Emotion, o historiador Thomas Dodman ressalta como a aflição, causada pela nostalgia e alimentada por um deslocamento forçado, pode progredir para a morte e a loucura. Depois da histeria, esse sentimento foi o mais amplamente estudado entre os acadêmicos franceses do século XIX.
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Muitas pessoas que saíram de casa, fugidas ou em busca de uma vida melhor, em pouco tempo adoeciam a ponto de enlouquecerem de tanta saudade causada pela nostalgia de sua terra natal.
Os homens que iam para as guerras também foram acometidos pelo mesmo problema. Inclusive, os médicos do exército levavam muito a sério a nostalgia, principalmente em casos de soldados isolados, que haviam sido transferidos para terras estrangeiras e hostis.
Durante 200 anos, a nostalgia se manifestou como algo que pode ser entendido hoje como transtorno de estresse pós-traumático, transformando os soldados em pessoas miseráveis e apáticas que apresentavam sinais de depressão clínica. Eles morreram porque a condição os impedia de comer e fazer a manutenção da higiene básica, levando a doenças oportunistas fatais oriundas do campo de batalha.
A pesquisa extensa feita por Dodman estima que o exército da União, durante a Guerra Civil Americana, sofreu 5.213 casos de "aflições nostálgicas" entre soldados brancos, dos quais 58 foram fatais. Durante a Revolução e as Guerras Napoleônicas, o sofrimento era tão grande que exércitos "infectados" pela nostalgia viam os soldados se desesperarem com quadros de insônia, anorexia e o desejo contínuo de voltar para casa.
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Nos campos de batalha, os médicos tentaram tratar os pacientes que sofriam de uma melancolia extrema com bebidas à base de plantas e até o uso de sanguessugas medicinais. Quando a hospitalização era a única alternativa, os pacientes foram frequentemente mantidos em quartos ou áreas isoladas, porque acreditava que a restrição de movimento faria o cérebro "esquecer" o sentimento ao focar em outros problemas. A revitalização por meio de banhos de água fria também acontecia nos hospitais psiquiátricos, e quase sempre levava à morte das pessoas por hipotermia.
O retorno à casa na esperança de que isso aliviasse os sintomas foi usado apenas para os soldados, já os migrantes acabavam enforcados, visto que o retorno não era uma opção, tampouco conviver com eles "infectados" pela sociedade.
No século XVII, o médico suíço Johannes Hofer, que descreveu a nostalgia como "uma doença neurológica de causa essencialmente demoníaca", cunhou a palavra "nostalgia" com base na palavra alemã heimweh (que se traduz como "saudade"). Rapidamente, o termo se tornou uma definição para o sofrimento que soldados e migrantes sentiam, antes de ser chamado de "psicose de migrantes" e até de "transtorno mentalmente repressivo-compulsivo".
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Na virada do século XX, o termo nostalgia caiu em desuso e passou a ser confundido com a esquizofrenia, perdendo seu status de doença distinta e independente. A evolução da compreensão médica e psicológica ao longo da segunda metade do século XX levou a uma redefinição da nostalgia e sua remoção das classificações médicas de doenças mentais.
Isso aconteceu porque a comunidade médica entendeu que a nostalgia é uma emoção de espectro misto, em que a pessoa tende a experimentar uma sensação agradável quando está em um bom momento emocional. No entanto, em períodos de adversidade, a nostalgia pode ser tão amarga a ponto de evoluir para um quadro de depressão nostálgica. O uso do termo "depressão" não configura o quadro como transtorno ou diagnóstico oficial de saúde mental, apenas descreve o sentimento de emoções negativas em relação às circunstâncias atuais, podendo fazer a pessoa sentir falta do que foi perdido.
Hoje, qualquer um que sofre de nostalgia persistente pode procurar a ajuda de um profissional de saúde mental para entender o que está acontecendo. Ninguém mais será perseguido, jogado em cadeias ou hospitais psiquiátricos como era em 1800 por ser naturalmente uma "criatura que anseia por coisas que não tem", como descreve Dodman.